quarta-feira, 27 de maio de 2009

5 – Lisboa 1995 (II)

Bernardo, deslumbrado com a sua situação profissional e sentimental, não sabia como agir face a Maria Rosa. Cada vez era mais difícil enfrentá-la cara a cara. Os seus olhos tristes começaram a despertar no jovem advogado de sucesso um sentimento de pena, que o deixava incapaz de colocar um ponto final naquela relação que já nada lhe dizia. Havia ainda o problema dos pais da rapariga e dos seus próprios pais que aguardavam o regresso dos dois jovens e a celebração do seu casamento. Eram um casal modelo na terra, um exemplo de uma linda história de amor. De origens humildes, os jovens estavam a triunfar em Lisboa e voltariam à terra para casar e trabalhar. Voltar já não estava nos planos nem de Bernardo nem de Maria Rosa, mas casar era um problema maior. A jovem continuava apaixonada e começava a sentir-se insegura. Era nítido que Bernardo andava a evitá-la uma vez que quase todos os dias lhe dizia que tinha que ficar no escritório da Vieira de Abrantes Associados até tarde uma vez que era o advogado mais jovem e tinha que demonstrar o que valia ao doutor António Augusto.

Na realidade Bernardo passava muito tempo no escritório e não eram raras as noites em que saía exausto a altas horas da madrugada. Mas não era só isso, as saídas com Beatriz tinham-se tornado um vício a que não conseguia dizer que não. Sentia-se muito bem na sua companhia e as festas eram animadíssimas, cheias de gente bonita e sofisticada que o fascinava.

Os fins-de-semana em Alpedrinha tornaram-se raros. Dizia aos pais o mesmo que a Maria Rosa, o trabalho ocupava-lhe todo o seu tempo e era impossível não trabalhar aos Sábados e Domingos. Para não dar a entender à família que algo de errado se passava, Maria Rosa acabava também por ficar em Lisboa. Ficava sozinha e quase não saía. Tinha vivido quase exclusivamente para, e em função de Bernardo e praticamente não tinha amigos.

Quanto mais se afastava de Maria Rosa, mais Bernardo se aproximava e desejava Beatriz. Aos seus olhos a mulher de António Augusto era uma verdadeira Deusa. Desejava-a ardentemente e verificava que o seu sentimento era correspondido.

‘Bernardo, está lindíssimo hoje, um verdadeiro galã. A gravata que lhe dei fica-lhe lindamente. Olhe que eu ainda lhe tiro a gravata. A gravata e o resto’- diz-lhe Beatriz numa festa em frente a todos os seus amigos. O jovem envergonha-se, fica vermelho como um pimentão, não consegue articular palavra. ‘Estou a brincar, meu querido, mas lá que está lindíssimo está’.

Estes piropos de Beatriz, uma mulher com uma experiência de vida enorme, provocavam em Bernardo um sentimento ambíguo, por um lado odiava-a, porque o envergonhava em frente de toda a gente, por outro, desejava-a cada vez mais.

Criado no seio de uma família pobre, mas honrada, estas eram situações a que não estava habituado. Valores como o respeito, a honra e a fidelidade estavam enraizados na sua maneira de ser. ‘Mas eu sou homem e os homens são fracos.’ – pensava.

Trair Maria Rosa era uma situação que queria evitar a todo o custo. Nunca tinha tido outra mulher na cama que não a sua namorada. Aliás, nunca tinha beijado nem desejado outra mulher.
No dia em que fez amor com Beatriz, tudo mudou para Bernardo. Era tarde e estava ainda a trabalhar no escritório, completamente só. Tinha ligado a Maria Rosa a dizer que ficaria a trabalhar, embora fosse sexta-feira e tivessem combinado ir ao cinema. Sentia-se aliviado por não lhe ter mentido, apesar de tudo, não gostava de mentir-lhe, ela não merecia. Enredado na quantidade imensa de documentos que tinha em cima da secretária, não notou que alguém acabara de entrar sorrateiramente e o observava com um olhar de desejo. Beatriz tinha mais uma qualidade, quando queria, conseguia tornar-se quase invisível.

Passaram uns bons minutos até que o jovem notasse a presença da sedutora mulher. Quando a viu, reagiu com um misto de surpresa e excitação. Não era raro isto acontecer quando estava com Beatriz, mas o facto de se encontrarem sozinhos no escritório do marido da própria, aumentava o seu desejo.

‘Então Sr. Doutor, ainda está a trabalhar a estas horas? É sexta-feira, não foi encontrar-se com a sua namorada?'

Beatriz tinha-se vestido a rigor para a ocasião. Tinha um vestido vermelho escuro de tal forma justo que mostrava mais do que escondia. Aproximou-se da secretária do atrapalhado advogado e inclinou-se fazendo com que fosse impossível a Bernardo não reparar nos seus magníficos seios que desde que a conhecera desejava tocar.

‘É hoje que me vai deixar tirar-lhe a gravata... e o resto?’

‘Beatriz, sejamos razoáveis, estamos nos escritórios da empresa do seu marido. Não podemos, não devemos...’ – diz Bernardo, pensando ao mesmo tempo que a situação de perigo em que se encontravam ainda tornavam tudo muito mais excitante.

‘Não podemos porquê? O Bernardo tem algum problema? Não gosta de mim?’

‘Gosto, mas… e a Maria Rosa’?

‘Você não gosta da Maria Rosa. Ela não é mulher para si. Se fosse, estaria agora com ela, ou não?’
Bernardo não conseguiu articular mais nenhuma palavra. Deixou-se conduzir pelos encantos de Beatriz.

Mulher experiente nas artes da sedução e do sexo, Beatriz provocou em Bernardo sensações que o jovem nunca pensou que existissem. Amaram-se ardentemente durante toda a noite. Foram arrojados ao arriscarem ser descobertos pelo segurança numa das suas rondas nocturnas. Usaram o gabinete de António Augusto, numa atitude provocatória que levou Bernardo a explodir de prazer.

Beatriz, ao contrário de Maria Rosa, gostava de comandar, chegava a ser bruta com Bernardo, dando-lhe ordens e chamando-lhe todos os nomes possíveis e imaginários. Batia-lhe na cara nos momentos mais intensos e o jovem deixava-se levar pela emoção e prazer.

Já era manhã quando Beatriz saiu do escritório com um ‘Adeus Bernardo, até logo…’.

Bernardo não saiu logo. Ficou sentado na sua cadeira com um olhar extasiado. Nunca tinha sentido nada assim. Não imaginava que uma mulher lhe pudesse provocar tais sensações. Queria, mais, queria muito mais…

Quando, horas mais tarde, acordou do torpor em que mergulhou desde a saída de Beatriz, Bernardo sentia-se um homem novo. De repente Maria Rosa parecia ter deixado de ser um problema. Ia resolver as coisas com ela de uma vez por todas. Beatriz tinha razão, não era mulher para ele.

Ao dirigir-se a pé para o seu quarto numa pensão da baixa, as mais variadas ideias vão aparecendo na sua cabeça. Vai, de uma vez por todas, sair da pensão. Com o ordenado que ganha, pode perfeitamente alugar um apartamento, não precisa de nada luxuoso, mas precisa de um espaço com mais privacidade, agora que é amante de uma senhora da alta sociedade lisbonense. Vai também pedir um empréstimo para comprar um carro. Acaba por gastar uma boa quantia mensal nos táxis que utiliza para ir e vir das festas e, para além disso, já anda aborrecido de ter que usar o metro para chegar ao escritório. ‘Sou um advogado de sucesso, não tenho que andar de metro.’ – vai pensando com os seus botões.

Ao entrar na pensão, dá de caras com Maria Rosa que o espera na entrada.

‘O que fazes aqui Maria Rosa?’

‘Espero-te Bernardo, esqueceste-te do que tínhamos combinado para hoje?'

Bernardo olha para o relógio e verifica que é quase uma da tarde. Tinha-se esquecido completamente que, para compensar a sua ausência no dia anterior, tinha combinado um almoço com Rosa Maria seguido de um passeio na zona de Belém.

'O que se passa contigo, parece que não dormiste. Ainda estás com a roupa que usas no escritório. Não dormiste em casa?'

Atrapalhado, lá se explicou como pode. Que tinha ficado a trabalhar até muito tarde e acabado por adormecer num dos sofás do escritório, foi o que lhe ocorreu dizer. Afinal, em parte, era verdade. Tinha mesmo passado a noite no escritório.

'Vou só tomar banho, já volto aqui para sairmos. Desculpa o meu atraso.'

'Subo contigo.'

'Não! Não sobes, ficas aqui!' - responde intempestivamente Bernardo.

Assustada com esta atitude do namorado, Maria Rosa não respondeu e decidiu sentar-se num dos pequenos sofás da recepção da pensão.

Enquanto subia as escadas, Bernardo pensava no que tinha acabado de acontecer. Nunca tinha sido indelicado com Maria Rosa, aliás, nunca tinha sido indelicado com mulher alguma, e agora de repente e sem se dar conta tinha reagido bruscamente a um simples pedido da sua namorada, ao ponto de a deixar visivelmente assustada.

Não se reconhecia naquela atitude, mas de facto não se sentia mal por ter reagido daquela forma, pelo contrário, sentia até uma certa excitação, qualquer coisa estranha que não sabia bem definir, mas que lhe provocava um bem-estar que não reconhecia.

Tomou um banho quase frio e desceu ao encontro de Maria Rosa que o esperava ansiosa.
'Bernardo, o que se passa contigo? Não percebi a tua reacção de há pouco. Quando venho aqui costumo subir contigo ao teu quarto enquanto espero por ti.' - diz.

'Desculpa Maria Rosa. Dormi pouco e mal esta noite e não estava de muito bom humor. Foi só isso. Não leves a mal.'

'Que a tua atitude não se repita, por muito cansada que eu esteja, recebo-te sempre de braços abertos e com um sorriso. Aliás, os meus dias não têm sido fáceis, mas tu nem tens tempo para saberes de mim.'

'Pois é, agora acusas-me de não querer saber de ti, qualquer dia vais dizer que eu te traio com outra mulher.'

Ainda hoje Bernardo não sabe como aquelas palavras lhe sairam da boca. Na realidade ele tinha acabado de trair Maria Rosa e a necessidade que teve de abordar o assunto de forma tão brusca e inesperada, é coisa que ainda hoje não consegue compreender.

'E não andas a trair-me?' - pergunta-lhe Maria Rosa corajosamente mas temendo a resposta.

'Não, não ando.' - responde.

'Tornaste-te um mentiroso Bernardo. Eu sei com quem andas a dormir...'

Antes que Maria Rosa pudesse dizer mais uma palavra, Bernardo explode num ataque de fúria agredindo-a com um soco na cara que a derrubou para cima do sofá.

'O que se passa? Tenha respeito pela senhora, não se esqueça que está num local público.' - diz o pequeno homem, recepcionista e dono da pensão, que assistira a tudo.

'Não se meta nisto, ou quer levar levar um soco também?' - reage Bernardo.

'E tu vai-te embora, desaparece da minha frente, que eu tenho mais que fazer do que aturar as tuas acusações de mulher fraca e insegura. Não serves para mim.'

Maria Rosa, sai dali a correr. Estava cheia de dores na cara e chorava desalmadamente. Chorava de dor, de emoção e tristeza. Aquele já não era o seu Bernardo.

Ao vê-la sair, Bernardo pensou: 'Este problema já está resolvido'. Estava a ser frio e calculista, mas curiosamente, isso não o incomodava muito. Tinha voltado a sentir algum prazer ao agredir Maria Rosa e não sabia porquê.