sexta-feira, 20 de novembro de 2009


Há coisas que, mesmo sem nos dar qualquer gozo, temos de as fazer, e por vezes a vida inteira! São as imposições da vida.
Outras há que fazemos com imenso gozo, a vida inteira, se necessário. É a parte voluntária da vida.
Depois temos aquelas coisas que que são um misto das duas anteriores em termos temporais: numas fases são feitas de uma forma voluntária, noutras por imposição.
Para nossa felicidade e saúde mental, ainda podemos escolher de algumas continuar ou não quando o voluntarismo desaparece.
Tudo isto para dizer que o História a Qu4tro Mãos durou enquanto foi feito de uma forma voluntariosa pelos seus autores. Dava gozo, a inspiração estava lá e as palavras saiam.
Factores externos, que infelizmente não fazem parte do nosso imaginário, mas sim da realidade, nua e crua, levaram-nos a um estado de apatia que nos bloqueou a imaginação e a vontade, ou antes, a voluntariedade.
Mas é passageiro e aguardem-nos que voltamos, brevemente, mais do que imaginam.

segunda-feira, 6 de julho de 2009

5 - Lisboa início de 1997 (VII)


Bernardo não mais viu Alfredo naquela noite. Ficou ainda alguns minutos sentado no banco da casa da piscina. A sua cabeça estava a cem à hora: a forma como conheceu Maria, a sua beleza, o banho na piscina e para completar Alfredo ter aparecido!
Quando saiu deu de caras com Beatriz. Bastou a Bernardo olhar para ela para se aperceber que estava furiosa. Quando Beatriz arregalava os olho e tremia o lábio inferior, o melhor era fugir.
‘Já há mais de uma hora que o procuro! Que smoking é esse? E porque tem os sapatos todos molhados? E…’
‘ Olha a Sra. Dona Beatriz no seu melhor!’, eram Maria que entretanto se aproximava e sem querer perder a oportunidade de trocar ironias com a mãe.
Sem se aperceber da verdadeira razão para tal interrogatório, continuou:’ Não, ele não roubou o smoking ao seu querido António. Fui eu quem o foi buscar ao vosso quarto e lho emprestou!
Bernardo deixou-se ficar calado e quieto, enquanto as duas mulheres trocavam olhares e palavras..
‘Sabes mãezinha,’, continuou Maria, ‘Eu ia a passar e o Dr. Bernardo também. Ah, e íamos a passar junto à piscina, como a passagem é muito estreita… a Mãezinha tem de alertar a empresa de catering de que as mesas estão muito próximas da piscina… assim como cai eu e o Dr. Bernardo, podia ter sido a Mãezinha. É que eu…’
‘Chega Maria!’, interrompeu Beatriz. ‘Você só está bem a contrariar-me. Aposto que fez de propósito… e ainda por cima envolveu o Dr. Bernardo nos seus esquemas!’
‘Beatriz, desculpe, Sra. D. Beatriz…’, corrigiu Bernardo ao aperceber-se da presença de Maria, que continuou:
‘Oh Dr. Bernardo, não tenha problemas comigo. Todos sabemos que aqui a Sra. D. Beatriz é muito dada a familiaridades, principalmente com rapazes que tem idade para serem filhos dela!’
Sem se conter, Beatriz prega uma bofetada em Maria com todas as forças que o estado de nervos lhe permitiu.
Maria leva a mão à cara, Bernardo fica sem respiração e Beatriz, segurando a mão com que bateu em Maria com a outra, diz:
‘Você estava a pedi-las há muito, mas agora começa a passar dos limites!’
Maria, ainda com a mão na cara, desata a rir às gargalhadas: ‘Estou a ver que neste tempo todo que estive em Londres não mudou nada! Sim senhora, continua a ter bom gosto. Aqui o Dr. Bernardo não é nada de se deitar fora! Mesmo com o Smoking do Dr. Abrantes…’, e continuando, ‘… há quanto tempo é que vocês andam? Ai, vai bater-me outra vez? Agora deste lado? Essa é por que idade, pelos dezasseis?’, continuou Maria ao ver Beatriz levantar novamente a mão, gesto que foi impedido por Bernardo que lhe segurou o braço.
‘Pois é Dr. Bernardo, ela tem mau feito. É muito violenta! Tem fama de ser um furacão noutras circunstâncias…’
O pensamento de Bernardo levou-o aquela primeira noite com Beatriz, em que ele se sentiu um verdadeiro homem. Havia sido uma noite de grande carga emocional da qual ele ainda se lembrava como se tivesse sido no dia anterior!’
Voltando ao presente, Bernardo continua:’… nós caímos à piscina. Chocamos um com o outro e caímos.!
‘Caíram à piscina?!’ Sinceramente, o que irão dizer as pessoas!’.
‘Sim, se eu amanhã estiver com uma bruta de uma pneumonia não em importância nenhuma…aliás a Sra. D. Beatriz nem vai dar conta, de tão ocupada que vai estar a ler as revistas da socialite e a telefonar às amigas a desculpar-se e a falar dos modelos das outras…’
‘Maria, de uma vez por todas, chega! Já viu o que o Dr. Bernardo vai pensar de nós, da nossa família? Que somos um bando de loucos e que não nos entendemos! ‘
‘E não é verdade?! E mais a mais, deixemo-nos de cinismos. Já deu para perceber, mesmo bêbada, que vocês se conhecem bem! Coitado do Dr. Abrantes, mais uma vez passado para trás… e pelo funcionário exemplar…’
‘Agora está a ofender-me a mim. Não fosse a senhorita estar alterada e eu não lhe permitia tais afirmações. Respeite o senhor seu pai, por quem tenho muita estima e a senhora sua mãe por quem também tenho uma grande estima!’- interceptou Bernardo, num tom mais solene do que o tido até ali. E continuando: ‘ Eu não admito que nem em pensamento, tenha essa ideia da minha pessoa. Tenho-me por uma pessoa idónea que tem vindo a conseguir as coisas fruto do seu suor! Eu sei que estou em sua casa, que a festa é sua, mas um homem tem o seu pudor!
‘Pudor, ah, ah. Ele tem pudor…’ E dizendo isto Maria afastou-se do parzinho que ficou lado a lado a vê-la aproximar-se de um grupo de jovens da idade dela.
Quando Maria estava bem longe, Bernardo, embalado pelo discurso em frente de Maria, continuou: ‘ Beatriz, você tem de ter mão na sua filha! É no mínimo desagradável! E agora, se me dá licença, vou-me embora. Tenho os pés gelados. Os sapatos estão todos molhados e começo a sentir frio.’
‘Mas Bernardo, temos de falar. ‘
‘Amanhã. Agora preciso de ir embora. ‘
E num passo apressado afastou-se na direcção da saída.
Quando entrou no carro respirou de alívio. Sentia-se em porto seguro. Pôs o carro a trabalhar em ponto morto e ligou o ar condicionado n máximo. Tinha os pés gelados e começava a ter arrepios de frio.
Recostou-se no banco, fechou os olhos e ficou assim um bom bocado até começar a sentir os pés a aquecer.
A imagem de Maria naquela vestido vermelho não lhe saía da cabeça. Nunca se tinha deslumbrado assim por uma mulher.
Quando já sentia os pés mais quentes arrancou rumo a casa. No caminho tocou o telemóvel. Era um número desconhecido. Não era hábito seu atender, mas sem saber bem porquê atendeu. Do outro lado, uma voz que já se ia tornando familiar:’ Apesar das circunstâncias, espero que tenhas gostado da tua futura esposa.’
Era Alfredo.
‘Futura esposa!? De que falas? ‘
‘Da Maria Vieira de Abrantes. ‘
‘Deve estar a brincar comigo. Não me chateie. Já tive que chegasse por hoje! Bruscamente desligou o telemóvel e atirou-o para o banco de trás do carro.
Com toda a força carregou no acelerador e continuou a toda a velocidade o caminho até casa.
Acordou no dia seguinte com a luz do dia a bater-lhe na cara. Estava deitado atravessado em cima da cama, ainda feita e tinha as calças e a camisa do smoking de António vestidos.
Demorou alguns segundos a perceber o que se passava. Aos poucos começou a lembrar-se de Alfredo na festa, da queda na piscina, de Maria, da zanga de Beatriz…
Olhou para o relógio. Tinha parado nas 11h30m, hora em que caiu à piscina. Procurou o telemóvel. Não o encontrou. Lembrou-se então do telefonema de Alfredo, já estava ele a caminho de casa e de no final ter atirado o telemóvel para o banco do carro.
Levantou-se e no caminho para a casa de banho foi tirando a roupa, que acabou de tirar enquanto punha a água a correr.
Maria não lhe saia do pensamento. Ele e ela dentro da piscina, eles na casa da piscina e Maria com aquele vestido vermelho.
Quando saiu do banho a campainha tocava insistentemente. Enrolou-se na toalha e enquanto se dirigia para a porta ia dizendo: ‘Já vai.’
Antes de abrir a porta espreitou pelo olho mágico. Era Mariana, a secretária. Intrigado, esquecendo-se que tinha apenas uma toalha enrolada à cinta abriu a porta.
‘Que fazes aqui!? Que se passa? ‘
‘Que se passa pergunto eu, pergunto eu Dr. Bernardo’, respondeu Sónia com um ar ainda preocupado. ‘ Estive toda a manhã a ligar-lhe e não me atende o telefone. São três horas da tarde e agora até o telefone está desligado!’, continuou.
‘Disseste três horas?!’
‘Sim, por isso é que vim aqui. O Dr. tem uma reunião às quatro horas com o advogado do caso do prédio da Rua Augusta…’
‘Arre! Vou chegar atrasado!’, resmungou enquanto batia com o punho cerrado na parede.
‘… Dr., eu tenho o processo ali no carro. O escritório do Dr. Serôdio fica a meia dúzia de quarteirões daqui. É só acabar de se arranjar e vai directo para lá… está tudo no carro.
‘Tens a certeza que trouxeste tudo? Perguntaste à Sónia se estava tudo direito?’
Mariana trabalhava há dois meses na Vieira de Abrantes. Tinha sido contratada para substituir Sónia que estava grávida e caso desse mostras de competência seria admitida como secretária de Bernardo.
‘Perguntei sim Dr. Bernardo. Está tudo direito! Não há dúvidas… nem era preciso perguntar. Os meus próprios olhos o confirmam…
E dizia isto com um ar malicioso enquanto olhava para Bernardo que entretanto deixara cair a toalha.
Bernardo quando se apercebe do estado em que está, cora e apressadamente apanha a toalha. Enrola novamente a toalha à cinta, puxa Mariana para dentro de casa e fecha a porta bruscamente.
‘Aguarde um bocado que eu vou-me vestir e já volto.
Enquanto se vestia espirrou mais umas poucas de vezes. De cada uma delas ouvia vinda da sala um 'santinha'. Estava ainda a vestir-se quando tocou a campaínha. Da sala Mariana: 'Eu abro'.
Ouviu-a falar com alguém e bater a porta. Enquanto arranjava o nó
da gravata foi caminhando até à sala.
'Quem era?'
'Era um estafeta e deixou este envelope para o doutor. Não tem remetente e diz '
Confidencial''
'Estranho...' balbuciou Bernardo...'Bom deixe ficar aí em cima da mesa.
Vamos lá a despachar que estamos em cima da hora...ora bolas, o relógio avariou...'
'Eu posso levar para consertar... se o doutor quiser.', ofereceu-se Mariana.
'Está bem, faça-me lá esse favor.'. Passou o relógio para a mão de Mariana e começou a vestir o casaco. Ainda com o casaco meio vestido bateu a porta enquanto Mariana já
esperava o elevador.
Ao entrar para o elevedor voltou a espirrar. Mais uma vez MAriana repetiu 'Santinha', mas desta vez com uma pontinha de malícia, seguido de ' Deve ter apanhado frio ontem à noite Dr. Bernardo... nesta época do ano as noites são frias...'
Bernardo olhou para ela, abriu a boca para falar, mas logo mudou de ideias. O elevador entretanto parara e a vizinha do segundo andar entarara.
Durante os dois andares que faltavam interrogava-se se MAriana dizia aquilo porque já todos sabiam do sucedido, ou se era mais uma das suas atitudes provocatórias iguais às tantas outras que vinha a lançar para cima dele desde que entrara para o escritório.
A reunião correu bem. O nervosismo de Bernardo rapidamente se transformou em calma, quando se apercebeu que Mariana tinha toda a documentação necessária.
'Pronto Dr., agora já confia mais em mim? Eu não lhe disse que estava tudo direito?!'
'Sim disse.' , repondeu Bernardo depois de mais um espirro. 'Acho que tenho de ir a uma farmácia comprar qualquer coisa para a constipação..', e continuando:'Depois de a deixar no escritório no regresso trato do assunto.'
'Eu tenho o meu carro à porta de sua casa Doutor. Não precisa de me levar ao escritório. Vamos fazer antes assim. O Doutor vai para casa e eu vou à farmácia...'
Bernardo começava a sentir-se sem forças. A febre começava a subir e ele fazia parte daquele grupo de pessoas que quando tem febre mal se aguentam de pé. Resolveu aceitar.
'Está bem. Vá então à farmácia e traga-me qualquer coisa que baixe a febre e me trate da garganta.'
E assim foi. Bernardo foi para casa e Mariana à farmácia. Quando estava a estacionar ouviu um beep vindo do banco de trás do carro. Era o telemóvel. Acabava de se desligar por falta de carga na bateria. Pegou nele, meteu-o ao bolso e meteu-se no elevador.
Resolveu tomar um banho antes de se deitar e quando estava a sair, a campaínha tocou.
Enrolou a toalha na cinta e foi abrir a porta, enquanto pensava:' Foi depressa à farmácia... não conheço nenhuma aqui perto...'
Abriu a porta e outro lado estava uma figura feminina, que não Mariana que lhe disse: 'Finalmente... pensei que tinha desaparecido...'

domingo, 21 de junho de 2009

5 - Lisboa início de 1997 (VI)

'Senhor Alfredo Gomes, se é que é este o seu nome, deixe-me, ao menos fazer-lhe um pedido, para sair desta situação com alguma honra' – diz Bernardo, tentando sair da situação o melhor que podia.
'Então o nosso Dr. é um homem de honra!' – responde Alfredo ironicamente. - 'Pois muito bem, diga lá qual é a sua condição, ou melhor, qual é o seu pedido.'
Neste momento, o jovem advogado só conseguia pensar no seu emprego. Afinal de contas, era isso que estava em jogo. Se o Alfredo enviasse algumas daquelas fotografias para o António Augusto, a sua carreira estaria arruinada. Tinha também certeza que se tal acontecesse, não conseguiria emprego em nenhum dos escritórios de advogados de Lisboa, uma vez que António Augusto certamente falaria com todos os seu amigos e conhecidos. Estava, por isso, decidido a fazer qualquer coisa para salvar o seu emprego e a sua reputação como advogado. Venderia a alma ao diabo se fosse necessário, mas tinha que manter-se na Viera de Abrantes.
'Faço tudo o que pretender, mas não mostre em caso algum estas fotografias ao Dr. Vieira de Abrantes nem à esposa.'
'Bernardo, Bernardo! Não precisa de dramatizar. Sejamos práticos. Nem eu, nem a organização a que pertenço temos qualquer interesse em que deixe de trabalhar na Vieira de Abrantes Associados. Isso é bom para sim e também é bom para nós. Porque é que acha que o escolhemos?'
'Confesso-lhe que não faço a mínima ideia da razão de me escolherem e também não sei para o que me escolheram. Que organização é essa de que tanto fala?'
Alfredo ri-se e olha para Bernardo com um ar de superioridade.
'Então o Dr. acha que eu lhe vou facilitar informação sobre a organização? Para já deve saber apenas o que lhe disse quando o encontrei pela primeira vez: a sede é na Suíça e vai ser o nosso contacto em Portugal.'
'Mas que tipo de trabalho querem que eu faça? Embora tenha alguns conhecimentos sobre pintura e pintores, não tenho qualquer actividade profissional ligada às artes e muito menos contactos com o meio artístico português. Isto a não ser, que considerem as festas a que vou com a Beatriz eventos culturais.'
'A informação que tem é suficiente por agora. A única coisa que preciso saber é se aceita ou não colaborar connosco.'
'Penso que já respondi à sua pergunta. Aliás, não me resta qualquer alternativa.' - responde Bernardo com um olhar de aflição de quem não faz a mínima ideia de onde se está a meter.
'Muito bem Bernardo, a nossa conversa acaba por aqui. Aguarde notícias nossas.'
'Mas como vos posso contactar?'
'Não precisa de nos contactar. Aguarde simplesmente instruções da nossa parte. E já agora, penso que não é necessário alertá-lo para o facto de que deve manter sigilo sobre a sua entrada para a organização...'
'Sim claro, esteja descansado.'
'Tenha um bom dia e muito obrigado pelo café.'
Dizendo isto, Alfredo levantou-se e saiu. Bernardo que tinha estado de pé durante toda a conversa, atirou-se para cima da sua cadeira quase sem forças. Nunca tinha enfrentado uma situação destas. Uma série de perguntas surgiam na sua cabeça. Perguntas às quais não sabia como responder.
Tentou acalmar-se e analisar os prós e contras da situação. Embora com muitas dúvidas sobre as actividades que iria desenvolver para a dita organização suíça, havia algo que o deixava um pouco mais tranquilo. O dinheiro que lhe pagariam faria com que as suas dívidas diminuíssem, podendo pagar ao banco e a Beatriz. A ideia de dever dinheiro à sua amante incomodava-o muitíssimo. Não suportava depender de uma mulher. Para além disso, talvez o trabalho a realizar não fosse nada de especial e não influenciasse em nada a sua carreira de advogado na Vieira de Abrantes. Fez um esforço para pensar de forma positiva em toda a situação. Teria que esperar por desenvolvimentos e, por isso, nada iria fazer de concreto. Aliás, não poderia mudar em nada as suas atitudes para não levantar suspeitas. António Augusto era fácil de enganar, mas Beatriz começava a conhecê-lo muito bem, e qualquer mudança de atitude da sua parte seria imediatamente por ela identificada e levaria a perguntas inconvenientes.
Ao pensar em Beatriz, lembrou-se que nesse mesmo dia tinha um jantar em casa dela. Há já muito tempo que não ia a casa dos Vieira de Abrantes devido à sua situação com Beatriz. Evitava sempre ter que encarar António Augusto num ambiente mais familiar. Embora ele fosse uma pessoa distante e pouco dada a demonstrações sentimentais, Bernardo sentia-se sempre um pouco intimidado quando tinha que estar simultaneamente com ele e com Beatriz. O olhar de António Augusto parecia-lhe sempre reprovador como que a dar-lhe a entender que sabia de tudo o que se passava entre ele e a mulher. De qualquer forma, este jantar até seria um bom pretexto para não ter que encarar Beatriz sozinha hoje. Embora estivesse um pouco mais tranquilo relativamente ao assunto de Alfredo Gomes e da sua organização, tinha receio que ela lhe notasse algo de estranho num olhar ou em qualquer coisa que dissesse. No jantar iam estar mais convidados uma vez que o casal Vieira de Abrantes celebrava o regresso a casa da sua filha mais velha, Maria, que estivera a estudar em Londres.
Beatriz já lhe tinha falado alguma vezes de Maria, dando-lhe sempre a entender que o relacionamento entre as duas não seria dos melhores. Maria era muito parecida com o pai e nada dada ao estilo de vida que a mãe levava. Desde há um ano e meio atrás que as preocupações de Beatriz com a filha tinham aumentado substancialmente, uma vez que, sem qualquer aviso prévio, a jovem estudante de História das Artes comunicou aos pais que se tinha mudado para casa do namorado, um tal Mike, que era guitarrista numa banda rock que actuava em bares nos subúrbios de Londres. Beatriz e António Augusto ficaram em pânico com a situação, mas pouco ou nada puderam fazer, a não ser tentar convencer Maria de que um músico de uma banda de rock londrina não era homem para ela. Este tipo de atitude dos pais fez com que o romance durasse ainda mais tempo.
A Beatriz tinha-lhe contado com muito mais pormenor a história do romance de Maria com Mike, mas Bernardo nunca se tinha interessado particularmente por isso. Aliás, ultimamente não eram raras as vezes em que Beatriz falava com ele sobre determinado assunto e ele acabava por ser perder noutros pensamentos. Lembrava-se, no entanto, de ela lhe ter comentado que o romance tinha terminado abruptamente quando Mike tinha decidido partir para os Estados Unidos a pretexto de um convite para integrar uma nova banda. Maria tinha ficado destroçada e resolvera que voltaria para Portugal assim que terminasse os seus estudos.
Assim tinha acontecido há três dias atrás para alegria de António Augusto e alívio de Beatriz. Maria voltara definitivamente para viver em Lisboa em casa dos pais e para celebrar este regresso, os Vieira de Abrantes resolveram organizar uma festa em sua casa que seria uma óptima oportunidade para mostrarem aos seus amigos e conhecidos que Maria voltara livre e desimpedida.
Quando Beatriz lhe disse que a filha ia voltar e que estava a organizar uma festa para assinalar o seu regresso, Bernardo não demonstrou qualquer interesse. Já conhecia uma das filhas do casal Vieira de Abrantes, a Toninha, e isso não o deixava muito à vontade, uma vez que era pouco mais velho que ela. O facto de ser amante de uma mulher que tinha idade para ser sua mãe tornava-se constrangedor para ele neste tipo de situações.
Perdeu-se nestes pensamentos e dedicou o resto do dia a rever uns processos que necessitavam a sua intervenção urgente. Como sempre, o trabalho estava para Bernardo à frente de todos os seus assuntos pessoais, incluindo o caso que mantinha com Beatriz já quase há dois anos.
No final da tarde passou no seu apartamento para se preparar para a festa em casa de Beatriz. Continuava sem a mínima vontade de comparecer, mas sabia que tinha obrigatoriamente que o fazer. Não teria como desculpar-se com Beatriz e o facto de não comparecer poderia aumentar ainda mais as suspeitas que todos tinham sobre o seu romance proibido.
Depois de esperar algum tempo para não ser dos primeiros convidados a chegar, Bernardo sai de casa mais com a sensação de que ia para um funeral do que para uma festa. O dia já tinha sido fértil em acontecimentos estranhos e só esperava que nada de errado acontecesse em casa dos Vieira de Abrantes.
Foi Beatriz quem lhe abriu a porta e ao vê-lo, suspeitou imediatamente que algo se passava.
'Bernardo eu disse-lhe que a festa era de cerimónia. Como é que não vem de smoking?'
Tinha-se esquecido completamente que a festa exigia smoking, coisa que nunca lhe acontecia.
'Esqueci-me Beatriz. Vou a casa trocar-me...' - disse tentando agir com naturalidade.
'Não vai nada, agora que já está aqui fique como está. Aliás, eu estava à espera que não chegasse tão tarde. Já estão quase todos aqui. O que é que se passou? Não está com boa cara.'
Beatriz, perspicaz como sempre, tinha notado que algo se passava e ia inundá-lo com perguntas.
'Entre, vamos para a sala. Não podemos ficar aqui muito tempo a conversar. De qualquer forma vai ter que me dizer o que se passa consigo.'
O facto de não poderem ficar muito tempo a conversar, livrou Bernardo de uma explicação imediata. No decorrer da festa lembrar-se-ia de uma desculpa para se justificar. Não conseguia perdoar-se pelo facto de se ter esquecido de vestir o smoking.
Após este cumprimento inicial, Beatriz e Bernardo separaram-se para manter aparências.
A casa estava cheia de gente. Beatriz esmerava-se sempre nas festas de sua casa e tudo era supervisionado até ao mais ínfimo pormenor, desde um talher numa mesa, até um arranjo de flores ou uma vela no jardim. O ambiente estava na realidade muito agradável mas Bernardo não se sentia particularmente à vontade uma vez que, estando de fato e gravata, chamava a si todas as atenções. Sentia-se observado e criticado especialmente pelas mulheres. Felizmente encontrou um grupo de conhecidos com que tinha suficiente à-vontade para dizer que se tinha esquecido que a festa era de cerimónia e, por isso, estava naqueles preparos. Dois gin-tónicos depois e já todos riam da situação.
A homenageada não tinha dado, até aquele momento, o ar da sua graça na festa. Os Vieira de Abrantes já estavam todos presentes, excepto Maria, e os convidados já começavam a perguntar por ela, o que estava a deixar Beatriz visivelmente ansiosa. Ao cruzar olhares com Bernardo, conseguiu fazer-lhe sinal para que a seguisse discretamente. Encontraram-se ao fundo do jardim, sem que tivessem dado muito nas vistas.
'Está tudo a correr mal. Começando por si Bernardo que nem se lembrou do smoking, e acabando na Maria que deve ver estar metida no quarto a fazer tempo para não descer só para me deixar nervosa.' - diz Beatriz num tom visivelmente perturbado.
'Tenha calma Beatriz. Não estamos aqui há tanto tempo assim.'
'Vê-se mesmo que não conhece ainda a Maria. Ela é exactamente igual ao pai, faz tudo para me contrariar. Acha que lhe agradou o facto de eu lhe preparar esta festa de boas vindas? Claro que não. Achou uma coisa perfeitamente desnecessária e sem sentido. E o pior de tudo é que o António Augusto se colocou imediatamente do lado dela e acabou por dizer que eu só penso em festas que não têm utilidade nenhuma.'
'Mas se a Maria não queria a festa porque é que insistiu?'
Ao ouvir estas palavras de Bernardo, Beatriz ficou vermelha de raiva.
'Até você? Agora até você está do lado da Maria e do seu paizinho.'
'Não é nada disso, Beatriz. A questão é que evitaria estar nesse estado de nervos se tivesse respeitado a vontade da sua filha. Afinal foi ela quem regressou a casa e deveria ter sido ela a decidir se se faria uma festa de comemoração do regresso ou não.'
'São todos iguais. Depois de tanto trabalho, na organização da festa, é este o agradecimento que me dão.'
Estavam ambos nesta discussão sem sentido quando ouviram todos os convidados a bater palmas. Maria que acabara de descer para se juntar à festa.
Ao ouvir as palmas, Beatriz despede-se apressadamente de Bernardo para se dirigir ao interior da casa e receber Maria na festa. Para não dar muito nas vistas, Bernardo permaneceu no local em que se encontrava durante mais algum tempo. Desde que era amante de Beatriz, estava habituado a fazer estes compassos de espera para não levantar suspeitas. Sabia que muitas vezes eram exagerados, mas não podia correr o risco de ser descoberto por António Augusto.
Ao entrar em casa, Beatriz encontra Maria já a conversar com alguns dos seus amigos mais chegados, mas, para seu espanto, a filha veste umas calças de ganga azuis já bastante usadas e uma blusa branca de um simplicidade atroz. 'Como pôde ela fazer-me uma coisa destas. Como pode aparecer vestida daquela maneira, quando lhe ofereci um vestido lindíssimo para vestir esta noite.' - pensou Beatriz.
Havia, no entanto, que manter as aparências e Beatriz era exímia em fazê-lo. Dirigiu-se a Maria e disse-lhe em voz alta para que todos ouvissem:
'Ainda bem que já desceu minha querida. Queria dizer-lhe a si e a todos, que eu, o seu pai e a Toninha estamos muito felizes por tê-la de volta a casa. A festa é para si. Divirta-se.'
'Obrigado mãe. Tenho a certeza que a festa vai ser óptima. Tu és óptima a organizar estas coisas.' - diz Maria num tom de ironia que não convence ninguém.
Todos os presentes tinham conhecimento do mau relacionamento entre Maria e Beatriz. Aliás, o facto de Beatriz ter organizado uma festa para a filha com tanto empenho e dedicação era estranho para todos. Muitos tinham adiado outros compromissos para estarem presentes em tão estranha reunião entre mãe e filha. Maria estava já a corresponder às expectativas dos que afirmavam que as coisas não iriam correr muito bem, uma vez que tinha optado por escolher uma roupa tudo menos apropriada para a ocasião.
Não era o facto de ter vestido umas simples calças de ganga com uma camisola branca que atenuava a beleza de Maria na sua festa. Era uma mulher muito bonita, com uma presença muito especial e mesmo que não vestisse apropriadamente para a ocasião conseguia, tal como a mãe, atrair para si todas as atenções. Para além disso, herdara do pai uma tenacidade e inteligência invulgares, que conjugadas com um espírito crítico acutilante, faziam de si uma pessoa verdadeiramente interessante e fora do comum.
Bernardo, que tinha ficado no jardim depois de ter falado com Beatriz, não tinha ainda sido apresentado a Maria e nem sequer a tinha visto. Continuava sem grande vontade de privar com mais uma filha da sua amante e deixou-se ficar a conversar com um grupo de seus conhecidos junto à piscina.
Depois de conversar longamente com um casal amigo, Maria decide ir ao jardim para cumprimentar o resto dos convidados. Sentia-se agora mais descontraída depois de ter bebido dois whisky e de ter conversado com grande parte dos seus amigos de sempre. Neste aspecto, Beatriz não tinha falhado, convidara todos os amigos da filha, mesmo aqueles de que não gostava e que raramente iam lá a casa.
À volta da piscina encontravam-se inúmeros convidados pois, embora fosse ainda inverno, a noite estava muito amena e os aquecedores de exterior faziam maravilhas. Maria deambulou por ali, cumprimentando todos, falando da sua experiência em Londres e dos seus planos para o futuro. Todos sabiam do seu relacionamento com Mike e da forma intempestiva como tinha terminado, mas este assunto não era abordado.
Ao dirigir-se ao grupo onde se encontrava Bernardo, Maria um pouco inebriada por mais um whisky que acabara de tomar, tropeça numa das mesas de apoio e em desequilíbrio tenta apoiar-se em Bernardo que não conseguindo ampará-la se deixa cair para trás. Perante o olhar perplexo de todos, os dois jovens acabam dentro da piscina.
Enquanto Bernardo tenta recuperar o fôlego e refazer-se do susto, Maria consegue segurar-se na borda da piscina e começa a rir-se desalmadamente.
Ao vê-la rir, Bernardo irritou-se.
'Veja por onde anda. Está bêbeda?'
'Sim, estou bêbeda e não vejo mesmo por onde ando.' - disse Maria rindo às gargalhadas. - 'Sei que neste momento estou na piscina contigo e aproveito para me apresentar. Maria Vieira de Abrantes.'
Ao ouvir o nome de Maria, Bernardo ficou sem palavras. Este era um dia em que não paravam de acontecer coisas estranhas.
'O meu nome é Bernardo Homem de Sousa e trabalho com o seu pai. As minhas desculpas se fui indelicado consigo, mas cair dentro da piscina não é coisa que se possa considerar agradável, mais a mais no Inverno.'
'Então tu é que és o Bernardo de que já me tinha falado do meu pai. Penso que nos podemos tratar por tu, afinal somos quase da mesma idade.'
'Claro que nos podemos tratar por tu. Desculpa os meus formalismos, mas na minha profissão são sempre necessários. Já agora, o teu pai falou-te de mim porquê?'
'Porque tu és um dos melhores advogados da firma, só isso.'
Bernardo sentiu-se bem, por ter sido elogiado por António Augusto.
'Para mim é uma honra trabalhar com um dos melhores advogados de Lisboa' – disse.
'Deixa-te lá de elogios ao meu pai e vamos mas é sair daqui. Estou a ficar gelada e a minha mãe não tarda aí para fazer um escândalo.'
Bernardo, que também já estava a ficar completamente gelado, acedeu de imediato ao pedido de Maria.
'Vem comigo, vamos ali à casa de apoio à piscina. Deve haver lá toalhas, que podemos usar para nos limparmos.' - disse Maria, pegando-lhe na mão e começando a correr.
Passaram pelos convidados, molhados até aos ossos e conseguiram chegar à casa de apoio sem serem vistos Beatriz.
'Cá estão as tolhas! Tira umas poucas e limpa-te.'
Bernardo estava a ficar constrangido. Para se limpar teria que se despir e não o poderia fazer em frente a Maria. Além disso, como iria fazer com o fato que estava completamente encharcado. Não adivinhava boas perspectivas para sair airosamente daquela situação sem que Beatriz soubesse. Preocupado com o que fazer, nem reparou que Maria já se tinha tinha tirado as calças e a camisola e que estava ao seu lado apenas com a roupa interior.
'Então? Não tiras a roupa?'
Ao vê-la, Bernardo desviou o olhar em sinal de respeito.
'Não me digas que nunca viste uma mulher em roupa interior.' - Diz Maria atrevidamente enquanto se embrulha numa toalha.
'Claro que sim.' - diz Bernardo envergonhadamente.
'Está bem, já percebi. Tira a roupa e embrulha-te numa toalha enquanto eu vou ao meu quarto vestir outra roupa e te trago um dos smokings do meu pai.'
Sem dizer mais nada Maria retira-se.
Bernardo despiu-se e limpou-se a uma das tolhas e ficou a aguardar.
Maria regressa uns vinte minutos depois. Vestia um vestido vermelho que impressionou Bernardo. O jovem advogado não tinha ainda tido tempo de apreciar a beleza da filha de António Augusto. Conhecera-a apenas há uns momentos atrás e já tanta coisa tinha acontecido.
'Consegui um smoking do meu pai, que te deve servir. Mas não encontrei uns sapatos. Vais ter que usar os teus mesmo molhados.'
'Estás linda com esse vestido! - Disse Bernardo involuntariamente.
'Esta não ocasião para piropos Dr. Bernardo. Veste-te, porque temos que voltar para a festa. Porque não vieste de smoking? A minha mãe deve ter ficado chocada.'
'Essa é uma longa história que agora não tenho tempo de te contar.'
'Está bem. Eu vou andando. Vemo-nos por aí.' - desse Maria afastando-se.'
'Obrigado por me teres salvo.'
'Obrigado por teres sido solidário ao caíres comigo na piscina.'
Bernardo não conseguiu deixar de sorrir. Ao vestir o smoking para voltar à festa pensava no seu dia. O encontro com Alfredo, as fotografias com Beatriz, o facto de se ter esquecido de vestir um smoking para a festa e a queda na piscina com Maria eram acontecimentos completamente fora do comum.
Estava quase a terminar de se vestir quando ouviu alguém entrar. Ao princípio pensou ser Maria que voltara, mas depressa verificou que era um vulto masculino.
'Boa noite Bernardo. Gostaste de conhecer a menina do Vieira de Abrantes?'
Reconheceu imediatamente a voz de Alfredo.
'O que é que você está aqui a fazer? Como conseguiu entrar?'
'Eu entro onde quero e tu não te tens que preocupar com isso. Estou aqui apenas para te dizer que o teu primeiro trabalho é aproximares-te da Maria e ganhares a confiança dela. E agora regressa para a festa e diverte-te.'

segunda-feira, 8 de junho de 2009

5 – Lisboa início de 1997 (V)

Enquanto Beatriz ia falando sobre as tricas da noite, Bernardo conduzia em silêncio. Estava longe dali. Interrogava-se sobre se conhecia aquele homem. Tinha quase a certeza que não. A sua memória fotográfica nunca i tinha traído. Era capaz de se lembrar de pessoas que conhecera em criança…
Bernardo, está a ouvir o que lhe estou a dizer?’.
Sim…’, respondeu Bernardo voltando ao presente.’… que disse?’
Que se passa? Não ouviu nada do que eu lhe disse desde que saímos da embaixada!
Nada… estou cansado, só isso.’
Quando chegarmos eu faço-lhe uma massagem e fica como novo!... Bernardo, Amor, você está mesmo cansado! Enganou-se no caminho… a sua casa fica para trás!’
Não, não me enganei. Eu vou levá-la a casa. Estou muito cansado. Desculpe, mas preciso mesmo de descansar!’
Mas Amor, as minhas massagens são mágicas. Você sabe disso’. Enquanto falava Beatriz ia passando a mão pelo rosto de Bernardo, que ia inclinando a cabeça para o lado da porta.
Bernardo, você está a evitar-me? Afinal que se passa?’
Nada, Beatriz! Já lhe disse que nada. Estou cansado, muito cansado e quero descansar!’
Mas está cansado de quê?’
Tinham chegado a casa de Beatriz. Como era habitual, Bernardo parou o carro, saiu e abriu a porta de Beatriz para que ela saísse. Deu o braço a Beatriz, bateu a porta e levou-a até à porta de casa. Em silêncio, esperou que Beatriz tirasse a chave da carteira.
Só uma coisa lhe invadia o pensamento: Alfredo. De onde o conhecia aquele homem?
Boa noite Bernardo.’
Mais uma vez foi chamado à realidade. Beatriz entretanto tinha encontrado a chave e despedia-se agora dele.
Boa noite Beatriz. Durma bem.’
Não me dá um beijo?’
Bernardo inclinou-se para beijar Beatriz, que num gesto rápido agarrou-lhe a gravata e beijou-o intensamente. Largou-o quando quis e entrou dentro de casa com um: ‘Sonhe comigo’
Mal se libertou de Beatriz Bernardo depois de um seco ‘Boa noite’ dirigiu-se para o carro quase em passo de corrida.
Entrou no carro, recostou-se no banco, fechou os olhos e respirou fundo. Depois de uns segundos assim, abriu os olhos, ligou o carro e arrancou a toda a velocidade em direcção a casa.
Não dormiu naquela noite. A imagem daquele homem não lhe saia da mente.
Tinha um julgamento no dia seguinte. Ia ser duro. Não podia perder… seria a primeira vez! Não podia deixar a boa fama que ia ganhando por mãos alheias. O seu nome, cada vez mais, valorizava na praça.
Mas nem tudo era mau. Quando chegou ao escritório foi informado que o julgamento por ordem do juiz havia sido adiado.
António tinha saído para um outro julgamento. Meteu-se no gabinete e depois de dar ordens à secretária para que não fosse incomodado, fechou a porta.
Tinha de decidir. E tinha pouca escolha!
As dívidas ao banco avolumavam-se a passos largos. E não via forma da situação se inverter. Beatriz tinha gostos caros e ele era orgulhoso demais para permitir que Beatriz o sustentasse!
As coisas tinham melhorado desde que António Augusto lhe passara a pagar como advogado e não como estagiário.

Bateram à porta do gabinete.
Eu já disse que…’. Não acaba a frase, pois no preciso momento em que levanta a cabeça, dá de caras com Alfredo.
‘… quem o deixou entrar?’, muda de discurso.
Sr. Doutor, não tive hipótese, este senhor…’
Não faz mal, Sónia, pode sair. Mas agora por favor. Estou mesmo ocupado, mesmo para o Dr. Abrantes…’
‘…E para a D. Beatriz.’, rematou Alfredo com ironia, perante o olhar arregalado de Sónia, a secretária.
Sónia saiu, sem mais perguntas, fechando a porta atrás de si.
Antes que Bernardo o convidasse, o homem sentou-se na cadeira em frente de Bernardo e com o mesmo à-vontade do dia anterior:
Então não me oferece uma bebida? Eu sei que ainda é cedo para beber, mas de manhã…’
Bernardo levantou-se, dirigiu-se à mesa das bebidas e sem mais comentários: ‘ Whisky, Gin, Vodka, Porto…’
Café, mesmo. Tem?’
Bernardo dirigiu-se para a porta, abriu-a e deu ordens a Sónia para que trouxesse dois cafés.
Voltou para a secretária, e num tom calmo, continuou: ‘A Sónia já traz os cafés’.
Muito bem, podemos então começar a falar de negócios. Para o ajudar a decidir trouxe-lhe isto.’. Alfredo pousou um envelope branco em cima da secretária a meio dos dois.
Bateram à porta. Era Sónia com o café. Impaciente, enquanto Sónia servia os cafés, Bernardo pegou no envelope e fixou o olhar no de Alfredo, que também o mirava com um olhar desafiador.
O telemóvel voltou a tocar. Bernardo depois de ver o número, acomodou-se na cadeira, como se pudesse ser visto e atendeu. Era da Suíça.
-Outra vez? Ainda nem há meia hora falei com ele! Não, não sei dela. Achas que ela foi porque eu quis?
… claro que sei que ela é uma peça importante. Podemos amanhã, mas eu já disse que preciso de uma semana. Sem a Maria não consigo desbloquear a verba para o transporte
… eles só mandam o quadro depois de o pagar e preciso da assinatura da Maria.
… Não, não sei dela.
… já estou a tratar disso!
… até amanhã.
Depois de desligar dirige-se à porta do gabinete e chama pela secretária:
-Mariana, pode chegar aqui, por favor?
Mariana era a secretária de Bernardo. Mariana tinha ido trabalhar para o escritório durante uma licença de maternidade de Sónia. Há muito que a relação deles já tinha passado o campo profissional.
A verdade é que Mariana era uma jovem a que poucos homens ficavam indiferentes à sua presença. Logo no primeiro dia, Bernardo se encantou com a rapariga.
Quando Sónia voltou, Mariana passou a assistente de Bernardo. Bernardo estava numa fase de grande ascensão profissional e já se justificava ter uma assistente.
Foi preciso pouco tempo para que se tornassem amantes. Do ficarem a trabalhar até mais tarde, a irem comemorar uma causa ganha, depressa as suas noites passaram a acabar num hotel ou no apartamento de Bernardo, quando não eram no sofá do gabinete, no mesmo onde ele teve noites de grande prazer com Beatriz.
Era uma relação clandestina que todos sabiam existir mas que ninguém denunciava.
Era um autêntico jogo do gato e do rato, aquela relação.
Beatriz, apesar de ter ciúmes, tratando-se para mais de uma rapariga d a idade das filhas dela, nada dizia pois para além de ser um bom disfarce para a sua relação com Bernardo, tinha medo que bernardo a deixasse definitivamente. Tinha consciência de que agora ele já não precisava tanto dela como antes. Já tinha alcançado uma posição quer social, quer profissional que lhe permitiriam sobreviver a um corte com Beatriz. Bernardo transformado num homem charmoso e elegante, capaz de encantar qualquer um.
António Augusto, apesar de reprovar a relação de Bernardo com Mariana, tinha encontrado no silêncio a forma de os manter discretos na relação. Para além disso, talvez Bernardo se cansasse de vez de Beatriz, como os demais amantes que ela tivera ao longo dos anos.
Os momentos mais complicados eram os em que Beatriz aparecia no escritório e usando do seu estatuto de esposa do patrão, fazia de Mariana uma moça de recados.
Mariana apareceu à porta do gabinete. Ao fim destes anos todos, continuava a ser uma mulher atraente. Mantinha os longos cabelos negros e o corpo dos vinte anos.
- Sim, Bernardo…
- Preciso que me telefones para as companhias de aéreas a saber para onde Maria viajou.
- Mas tu não tinhas ficado de a ir buscar?
- Pois ela tinha-me pedido que a levasse ao aeroporto, mas não me disse para onde ia. Só que me atrasei na reunião com o Alfredo e quando cheguei a casa ele já tinha saído. O pior é que preciso dela para assinar a procuração para poder receber o dinheiro da venda da quinta de Santarém.
- Pois a Beatriz e a Toninha estão controladas…
- …e a Beatriz não sabe nada?
- Não, raios partam a velha. Desde que casou com aquele Playboy ainda ficou mais estúpida!
- Tem calma, tudo se resolve. E se programássemos algo para logo? Ainda tenho no frigorífico uma garrafa de Moet et Chandon. Eu pedia o jantar e depois via-se…
- Não Mariana, hoje não estou com disposição para jantares. Estou cansado, quero dormir e…
- Já percebi tudo. É sempre assim. Não consegues ficar indiferente à Beatriz!
E. sem dar hipótese a Bernardo de responder vira-lhe costas.
Bernardo levanta-se num repente da cadeira e agarra-lhe o braço antes no momento em que ela punha a mão à porta. Empurra-a contra a porta e, quase a encostar o nariz no dela:
-Eu já te disse que a Beatriz não era para aqui chamada! Beatriz é passado…
-Ok, agora deixa-me, tenho mais que fazer…
E logo que se libertou de Bernardo, Mariana saiu porta fora, batendo-a com violência.
Bernardo voltou para a cadeira, abriu a gaveta da secretária e de debaixo de um monte de papeis tirou um envelope.O envelope que Alfredo lhe dera naquele dia.
Bernardo não queria acreditar quando abriu o envelope. Eram fotos dele com Beatriz nos momentos mais intimos.
As suas feições mudavam à medida que via as fotos, sentia-se empalidecer. As pernas tremia, as forças faltavam. Fossem ele lá quem fossem, tinham-no na mão!
Alfredo apercebeu-se do estado de fragilidade em que o deixou e perante isso:
-Presumo que já tenha decidido.
-Tenho alternativa?- perguntou Bernardo. Sentia-se um animal encurralado. Nunca assim se tinha sentido, nem mesmo quando Beatriz o ameaçava.
-Caro Dr. Sousa, … é assim que gosta que lhe chamem, não é?... continuo a dizer que a decisão está do seu lado. Mas se continuar com duvidas, temos mais dados que se podem tornar relevantes… e reveladores…
Apeteceu-lhe dar um murro a Alfredo. Aquele homem estava a deixá-lo enraivecido. Sentia o chão fugir-lhe debaixo dos pés e só tinha um caminho:
- Aceito, mas com uma condição…
-Atenção Dr. Bernardo Sousa, não creio que esteja em condições de impor condições…

quarta-feira, 3 de junho de 2009

5 – Lisboa início de 1997 (IV)

- A entrega do Manet está atrasada, Bernardo – ouve do outro lado da linha.
- Sim, a entrega está atrasada, mas surgiram uns imprevistos que já estou a tentar resolver. Dentro de uma semana, penso ter o quadro em Portugal.
- Tens uma semana, nem um dia mais para terminares a tua parte do trabalho. Não te atrases, sabes que tens a cabeça a prémio. A chefe não está a gostar da tua prestação.
- Que se lixe a chefe. Se ela quiser que venha falar comigo!
- Não me faças rir. Ora tu, um mero peão a falar com a chefe. Não me faças perder tempo. Tens uma semana... - disse desligando o telefone.
Bernardo atira com o telemóvel para cima da mesa - 'Mas quem é que este fulano pensa que é? Ainda por cima a chamar-me peão. O Bernardo Homem de Sousa não é peão de ninguém.'
Embora sem se dar conta, Bernardo era sem dúvida uma peça de pouca importância numa organização criminosa de traficantes de obras de arte roubadas na qual tinha entrado quase sem dar por isso, um ano e meio depois de ter começado a ser amante de Beatriz. Aliás, foi mesmo numa recepção a que foi com ela que conheceu o Alfredo Gomes com quem tinha acabado de falar.

Tudo aconteceu numa altura em que Bernardo se sentia extraordinariamente bem. O romance com Maria Rosa tinha acabado há mais de um ano e ele com pouco esforço tinha conseguido não sair nada mal com a situação.
Maria Rosa tinha desaparecido completamente da sua vida. Ainda tinha tentado telefonar-lhe, mas nunca tinha conseguido falar com ela. Que não estava em Lisboa ou que estava indisposta eram as respostas que recebia de quem lhe atendia o telefone. Depois de três ou quatro telefonemas, desistiu completamente. O facto de Maria Rosa estar grávida e de ter a certeza absoluta de que esse filho era seu nunca lhe causou demasiado transtorno. Quando pensava neste assunto acabava sempre por admitir que nada tinha nada a ver com ele uma vez que Maria Rosa afirmara peremptoriamente que aquele filho era só dela.
Qualquer pensamento mais negativo que Bernardo tivesse relativamente à situação da antiga namorada era rapidamente rebatido pelo facto de estar a viver intensamente o romance com Beatriz.
Encontravam-se quase todos os dias ao final da tarde no apartamento que entretanto tinha alugado na Avenida João XXI.
Tinha sido um achado aquele apartamento. Os apartamentos na João XXI eram extremamente caros e existiam muito poucos para alugar. Bernardo tinha um ordenado razoável, mas que não dava para grandes luxos. De qualquer forma, não pretendia morar fora da cidade de Lisboa, por um lado porque se assim fosse, teria que enfrentar filas da trânsito enormes para chegar ao escritório e por outro, porque tal dificultaria muito os encontros com a sua amante.
Negociou o aluguer até ao centavo e conseguiu um preço bastante em conta por três assoalhadas. Era o ideal para si, com a sala um quarto e um escritório. A localização permitia-lhe ir e vir dos escritórios da Vieira de Abrantes a pé.
No dia em que se mudou, Bernardo sentiu-se realizado. O jovem de Alpedrinha, de origens humildes tinha conseguido um bom emprego, uma amante de sonho e agora tinha também um lar.
Beatriz gostou do apartamento. Era antigo, mas tinha sido reformulado recentemente. A mobília e a decoração eram um pouco minimalistas de mais para o seu gosto, mas estavam bem para um homem a viver sozinho.
Passaram a encontrar-se todos os dias no apartamento de Bernardo para se entregarem durante várias horas aos prazeres da carne. A timidez e o deslumbramento iniciais de Bernardo foram a pouco e pouco desaparecendo e as suas atitudes criativas e dominadoras começaram a encantar Beatriz que cada vez se sentia mais envolvida emocionalmente naquela relação.
Para além destes encontros diários, Bernardo e Beatriz continuavam a frequentar os mais variados eventos sociais a que António Augusto faltava por falta de vontade.
Segue-se ao aluguer do apartamento, a compra do primeiro carro. Embora tal não se justificasse para ir e vir do trabalho, Bernardo detestava usar sempre o carro de Beatriz quando saiam juntos. Comprou um utilitário de gama média que o obrigou a fazer um empréstimo bancário. Não gostava desta situação, mas era a única forma de poder ter um carro à sua altura.
O esforço financeiro a que Bernardo se sujeitava com o aluguer do apartamento, a prestação do carro e as despesas em restaurantes e festas de luxo, começou a ser demasiadamente elevado. O vencimento mensal da Vieira de Abrantes e Associados não era suficiente para o estilo de vida que levava. Teria que encontrar rapidamente uma solução que lhe permitisse aumentar os seus rendimentos mensais.
Nunca deu conta desta situação a Beatriz. Tinha vergonha de assumir perante uma mulher que estava em dificuldades. Aliás, para que Beatriz nem sequer imaginasse que alguma coisa de errado se passava, passou a insistir em pagar todas as despesas que faziam quando estavam juntos. Os fins-de-semana que passavam fora de Lisboa, pelo menos uma vez por mês eram sempre pagos por Bernardo com o seu cartão de crédito.
Beatriz, com uma intuição bastante apurada, sabia muito bem que o que Bernardo ganhava na empresa do seu marido não era o suficiente para levar a vida que levava. Resolveu, porém, que não faria nada para dar a entender que sabia. Estava realmente apaixonada e começa a sentir-se insegura por causa da diferença de idades entre os dois. O facto de Bernardo querer pagar todas as despesas era como que uma garantia de que queria estar com ela.
Houve porém, uma situação que levou Bernardo a falar neste assunto. Tinham combinado passar um fim-de-semana numa pousada em Évora e, como sempre, era Bernardo quem estava encarregado de fazer todas as marcações e pagamentos. Mas, quando se preparava para fazer os pagamentos na agência de viagens, o seu cartão de crédito tinha sido cancelado pelo banco por falta de pagamento. Não havia outra solução se não cancelar todas as reservas e inventar qualquer desculpa para Beatriz.
Telefonou-lhe para casa, mas ela já não estava. Respondeu-lhe uma das criadas que lhe disse que a senhora tinha saído de fim-de-semana e que só voltaria no Domingo à noite.
Bernardo resolveu ir para casa e esperar que Beatriz por la passasse como era costume nos fins-de-semana em que saiam de Lisboa.
Beatriz chega à hora combinada.
'Bernardo meu querido, vamos já sair, assim chegamos a Évora ainda cedo.'
Sem saber o que fazer, Bernardo diz:
'Olá Beatriz. Lamento, mas neste fim-de-semana vamos ter que ficar em Lisboa.'
'Como assim? Passa-se alguma coisa. Está com um ar estranho, Bernardo. Não se está a sentir bem?'
'Na verdade não me estou a sentir nada bem Beatriz.' - responde Bernardo.
'Mas o que se passa? Precisa de um médico? O que é que sente?'
'Não me estou a sentir mal fisicamente. Não preciso de médico nenhum. A única coisa de que preciso é coragem, para lhe dizer o motivo pelo qual não podemos ir de fim-de-semana.'
Não vendo como justificar-se, Bernardo tinha decidido contar a verdade.
'Mas o que se passa de tão grave assim? Não me diga que a sua antiga namorada lhe ligou!'.
Beatriz fala de Maria Rosa, porque sempre sentiu algum ciúme e insegurança pelo que Bernardo tinha vivido com ela. O facto de nunca mais terem falado da antiga namorada aumentava ainda mais a sua insegurança, uma vez que acabava por não saber se algum contacto entre os dois se mantinha.
'Não é nada disso. A Maria Rosa não tem nada a ver com isto. Aliás, não tenho notícias dela já há meses!
'Então diga Bernardo, eu não vou estar para aqui a adivinhar o que se passa consigo! - responde Beatriz cada vez mais ansiosa.
'O assunto tem a ver comigo e só comigo, Beatriz!'
'Estou a ficar ansiosa e preocupada. Diga de uma vez por todas. Somos dois adultos e você esta a agir como uma criança.' - insiste Beatriz.
'A verdade Beatriz é que eu não tenho dinheiro para pagar as despesas do fim-de-semana. O banco cancelou o meu cartão de crédito.' – desabafa Bernardo com um suspiro profundo.
‘Bernardo é só isso? Pensei que era uma coisa mais grave! Assustaste-me.’
‘Mais grave Beatriz? Não achas que a situação é grave? O meu cartão de crédito está cancelado e não tenho dinheiro sequer para pagar a prestação do carro.’ – diz Bernardo já fora de si.
‘Vamos resolver isso facilmente. O fim-de-semana já está cancelado e por isso essa questão já está resolvida. Quanto à questão do carro eu vou emprestar-te o dinheiro para a prestação deste mês.’
E assim foi, naquele mês e nos meses que se seguiram. Bernardo conseguiu saldar algumas das suas dívidas com ajuda de Beatriz e sem que António Augusto soubesse do sucedido. Beatriz sentia-se confortável com a situação, pois ao emprestar dinheiro a Bernardo, a sua insegurança relativamente a ele diminuía. ‘Ele não vai pensar noutra mulher! Agora temos algo mais que nos liga. ‘ – pensava erradamente.
Bernardo por seu lado encontrava-se numa situação tudo menos confortável. Não suportava a ideia de dever dinheiro a Beatriz indefinidamente. Tinha que encontrar uma maneira de lhe pagar o mais rapidamente possível, mas não conseguia encontrar uma solução. A única coisa que poderia fazer era deixar o apartamento da João XXI e tentar alugar um outro mais barato. O carro não poderia vender porque certamente o dinheiro da compra não daria para pagar o empréstimo correspondente.
Para além das dívidas, havia ainda outra questão que provocava mau estar a Bernardo. Era um homem e, por isso, não suportava estar a ser ajudado por uma mulher. Sentia que era a sua masculinidade que estava a ser posta em jogo e isso atingia como uma farpa o seu monstruoso ego de jovem advogado de sucesso.
Foi nesta altura que aconteceu algo que viria a dar nova reviravolta na sua vida.
Após ter recusado vários convites de Beatriz para festas e outros eventos sociais, Bernardo resolve aceitar um convite para uma recepção na Embaixada da Suíça. Claro que o convite tinha sido dirigido pelo Embaixador ao Dr. Vieira de Abrantes e sua esposa, mas António Augusto nem chegou a saber da sua existência, uma vez que era Beatriz quem tratava de todos os assuntos sociais. Como não era usual a embaixada da Suiça fazer este tipo de recepções, Beatriz exigiu que Bernardo a acompanhasse. ‘Bernardo vai estar lá toda a gente importante de Lisboa. É uma óptima oportunidade para si. ‘ – diz-lhe Beatriz ao telefone.
Chegados à embaixada, Beatriz e Bernardo rapidamente encontram várias pessoas conhecidas e depressa se tornam o centro das atenções quando Beatriz, ao ser cumprimentada pelo embaixador, lhe apresenta Bernardo como seu amante. Era assim aquela mulher, adorava ser o centro das atenções. Conseguiu por um momento que todos se calassem e aproveitou a ocasião para dizer a todos que, evidentemente Bernardo não era seu amante, caso assim fosse nunca o diria em público, mas que aproveitava para apresentar aos que ainda não conheciam, o jovem advogado mais promissor de Lisboa.
Bernardo, habituado que estava às excentricidades de Beatriz, aproveitou a ocasião para referir que a sua amiga era uma exagerada e que tinha muito gosto em conhecer todos os presentes. Na realidade o seu ego era alimentado por estes pequenos acontecimentos e, embora lhe fosse difícil admitir, gostava que Beatriz agisse daquela forma.
Para além das pessoas que sempre apareciam nestes eventos sociais da cidade de Lisboa, havia nesta recepção do Embaixador da Suíça um grupo de indivíduos que nem Bernardo nem Beatriz tinham alguma vez visto e que estiveram sempre separados dos outros convidados. Falavam em francês o que indicava que alguns seriam estrangeiros. Suíços pensaram.
A dada altura, enquanto Beatriz falava com um grupo de amigas, Bernardo fica por momentos sozinho. Aproveita para observar a luxuosa decoração da Embaixada. Repara num Picasso que se encontrava mesmo a seu lado e que identifica imediatamente como sendo um dos trabalhos da juventude do pintor. As visitas que fazia a museus e exposições quando namorava com Maria Rosa tinham enraizado em si o gosto pela pintura. Para além disso, as leituras que fazia por lazer eram essencialmente sobre pintores e pintura. Não lhe era, por isso difícil fazer tal identificação.
Estava perdido nestes pensamentos quando sente que alguém lhe toca no ombro. Vira-se imediatamente pensando ser um dos seus conhecidos, mas depara-se com um estranho que, curiosamente, tinha notado no grupo que estivera sempre separado dos restantes convidados.
‘Boa noite Dr. Bernardo Nuno Homem de Sousa, pelo que vejo aprecia obras de arte.’ – disse o estranho.
‘Boa noite. Sim é verdade, não sou nenhum perito, mas sei apreciar aquilo que é realmente bom.’
‘Eu sei que assim é’ – reponde o estranho com um ar de ironia que intimida Bernardo.
‘Já agora, posso perguntar-lhe como sabe o meu nome? Não me lembro de termos sido apresentados.’
‘Não é difícil saber o seu nome, a senhora que o acompanha fez questão de o apresentar a todas as pessoas que aqui estão. ´
‘É verdade. Mas não me lembro que tenha referido o meu nome completo.’ – responde Bernardo, já bastante incomodado. Na verdade o à-vontade com que aquele estranho se lhe estava a dirigir era fora do comum.
‘Não se lembra? Estou a ver que é perspicaz. Tem razão, a Beatriz Vieira de Abrantes não disse o seu nome completo.’
‘ Devo dizer-lhe que não estou a gostar da conversa que estamos a ter. Eu não o conheço e portanto exijo-lhe que me fale noutro tom.’
‘Acalma-te Bernardo, eu sei mais sobre ti do que o que possas imaginar.’ – responde o estranho.
Bernardo nesta altura ficou fora de si. Aquela pessoa que não conhecia de lado nenhum, tinha começado a tratá-lo por tu.
‘Por favor não me trate por tu. O senhor não me conhece, por isso, deixa-se de intimidades.’
‘Baixa a voz Bernardo, não vamos chamar a atenção. Eu chamo-me Alfredo Gomes e negoceio obras de arte. A organização para a qual trabalho tem sede na Suíça e precisamos de um contacto em Portugal porque há uns negócios em perspectiva por aqui. Sei que estás com muitas dificuldades financeiras. Com o que ganhas na Vieira de Abrantes Associados não vais conseguir manter a vida de “playboy” rico que queres para ti. Aprecias arte, sobretudo pintura, o que junta o útil ao agradável. Tens oportunidade de ganhar uma boa quantia em dinheiro que resolverá imediatamente todos os teus problemas. Só tens que fazer o que te dizem, mantendo o bico calado.'
Bernardo não sabia o que responder. Mais do que a proposta que lhe estava a ser feita, incomodava-o o facto daquele homem saber tudo sobre a sua vida. Como era possível que soubesse que estava com problemas financeiros se só tinha comentado tal facto com Beatriz?
‘O que dizes? Aceitas? É a tua salvação financeira.’
‘Penso na sua proposta depois de me dizer como conseguiu essas informação sobre mim.’
‘A organização não brinca, Bernardo. Nós temos os nossos meios para obter informações que só a nós dizem respeito. A Beatriz já vem aí. Fica com um cartão meu. Liga para esse número com uma reposta, amanhã. Sem falta.’
Ao dizer isto o estranho, que Bernardo duvidava que se chamasse realmente Alfredo Gomes, afasta-se para ir de novo integrar-se no seu grupo.
Assim que Beatriz chega junto de si, pede-lhe para saírem imediatamente dali. Não se estava a sentir bem. Estava atónito com o que se tinha passado. Uma dúvida não deixava de o perturbar. ‘Como é que este homem sabe tudo sobre a minha vida?’