quarta-feira, 3 de junho de 2009

5 – Lisboa início de 1997 (IV)

- A entrega do Manet está atrasada, Bernardo – ouve do outro lado da linha.
- Sim, a entrega está atrasada, mas surgiram uns imprevistos que já estou a tentar resolver. Dentro de uma semana, penso ter o quadro em Portugal.
- Tens uma semana, nem um dia mais para terminares a tua parte do trabalho. Não te atrases, sabes que tens a cabeça a prémio. A chefe não está a gostar da tua prestação.
- Que se lixe a chefe. Se ela quiser que venha falar comigo!
- Não me faças rir. Ora tu, um mero peão a falar com a chefe. Não me faças perder tempo. Tens uma semana... - disse desligando o telefone.
Bernardo atira com o telemóvel para cima da mesa - 'Mas quem é que este fulano pensa que é? Ainda por cima a chamar-me peão. O Bernardo Homem de Sousa não é peão de ninguém.'
Embora sem se dar conta, Bernardo era sem dúvida uma peça de pouca importância numa organização criminosa de traficantes de obras de arte roubadas na qual tinha entrado quase sem dar por isso, um ano e meio depois de ter começado a ser amante de Beatriz. Aliás, foi mesmo numa recepção a que foi com ela que conheceu o Alfredo Gomes com quem tinha acabado de falar.

Tudo aconteceu numa altura em que Bernardo se sentia extraordinariamente bem. O romance com Maria Rosa tinha acabado há mais de um ano e ele com pouco esforço tinha conseguido não sair nada mal com a situação.
Maria Rosa tinha desaparecido completamente da sua vida. Ainda tinha tentado telefonar-lhe, mas nunca tinha conseguido falar com ela. Que não estava em Lisboa ou que estava indisposta eram as respostas que recebia de quem lhe atendia o telefone. Depois de três ou quatro telefonemas, desistiu completamente. O facto de Maria Rosa estar grávida e de ter a certeza absoluta de que esse filho era seu nunca lhe causou demasiado transtorno. Quando pensava neste assunto acabava sempre por admitir que nada tinha nada a ver com ele uma vez que Maria Rosa afirmara peremptoriamente que aquele filho era só dela.
Qualquer pensamento mais negativo que Bernardo tivesse relativamente à situação da antiga namorada era rapidamente rebatido pelo facto de estar a viver intensamente o romance com Beatriz.
Encontravam-se quase todos os dias ao final da tarde no apartamento que entretanto tinha alugado na Avenida João XXI.
Tinha sido um achado aquele apartamento. Os apartamentos na João XXI eram extremamente caros e existiam muito poucos para alugar. Bernardo tinha um ordenado razoável, mas que não dava para grandes luxos. De qualquer forma, não pretendia morar fora da cidade de Lisboa, por um lado porque se assim fosse, teria que enfrentar filas da trânsito enormes para chegar ao escritório e por outro, porque tal dificultaria muito os encontros com a sua amante.
Negociou o aluguer até ao centavo e conseguiu um preço bastante em conta por três assoalhadas. Era o ideal para si, com a sala um quarto e um escritório. A localização permitia-lhe ir e vir dos escritórios da Vieira de Abrantes a pé.
No dia em que se mudou, Bernardo sentiu-se realizado. O jovem de Alpedrinha, de origens humildes tinha conseguido um bom emprego, uma amante de sonho e agora tinha também um lar.
Beatriz gostou do apartamento. Era antigo, mas tinha sido reformulado recentemente. A mobília e a decoração eram um pouco minimalistas de mais para o seu gosto, mas estavam bem para um homem a viver sozinho.
Passaram a encontrar-se todos os dias no apartamento de Bernardo para se entregarem durante várias horas aos prazeres da carne. A timidez e o deslumbramento iniciais de Bernardo foram a pouco e pouco desaparecendo e as suas atitudes criativas e dominadoras começaram a encantar Beatriz que cada vez se sentia mais envolvida emocionalmente naquela relação.
Para além destes encontros diários, Bernardo e Beatriz continuavam a frequentar os mais variados eventos sociais a que António Augusto faltava por falta de vontade.
Segue-se ao aluguer do apartamento, a compra do primeiro carro. Embora tal não se justificasse para ir e vir do trabalho, Bernardo detestava usar sempre o carro de Beatriz quando saiam juntos. Comprou um utilitário de gama média que o obrigou a fazer um empréstimo bancário. Não gostava desta situação, mas era a única forma de poder ter um carro à sua altura.
O esforço financeiro a que Bernardo se sujeitava com o aluguer do apartamento, a prestação do carro e as despesas em restaurantes e festas de luxo, começou a ser demasiadamente elevado. O vencimento mensal da Vieira de Abrantes e Associados não era suficiente para o estilo de vida que levava. Teria que encontrar rapidamente uma solução que lhe permitisse aumentar os seus rendimentos mensais.
Nunca deu conta desta situação a Beatriz. Tinha vergonha de assumir perante uma mulher que estava em dificuldades. Aliás, para que Beatriz nem sequer imaginasse que alguma coisa de errado se passava, passou a insistir em pagar todas as despesas que faziam quando estavam juntos. Os fins-de-semana que passavam fora de Lisboa, pelo menos uma vez por mês eram sempre pagos por Bernardo com o seu cartão de crédito.
Beatriz, com uma intuição bastante apurada, sabia muito bem que o que Bernardo ganhava na empresa do seu marido não era o suficiente para levar a vida que levava. Resolveu, porém, que não faria nada para dar a entender que sabia. Estava realmente apaixonada e começa a sentir-se insegura por causa da diferença de idades entre os dois. O facto de Bernardo querer pagar todas as despesas era como que uma garantia de que queria estar com ela.
Houve porém, uma situação que levou Bernardo a falar neste assunto. Tinham combinado passar um fim-de-semana numa pousada em Évora e, como sempre, era Bernardo quem estava encarregado de fazer todas as marcações e pagamentos. Mas, quando se preparava para fazer os pagamentos na agência de viagens, o seu cartão de crédito tinha sido cancelado pelo banco por falta de pagamento. Não havia outra solução se não cancelar todas as reservas e inventar qualquer desculpa para Beatriz.
Telefonou-lhe para casa, mas ela já não estava. Respondeu-lhe uma das criadas que lhe disse que a senhora tinha saído de fim-de-semana e que só voltaria no Domingo à noite.
Bernardo resolveu ir para casa e esperar que Beatriz por la passasse como era costume nos fins-de-semana em que saiam de Lisboa.
Beatriz chega à hora combinada.
'Bernardo meu querido, vamos já sair, assim chegamos a Évora ainda cedo.'
Sem saber o que fazer, Bernardo diz:
'Olá Beatriz. Lamento, mas neste fim-de-semana vamos ter que ficar em Lisboa.'
'Como assim? Passa-se alguma coisa. Está com um ar estranho, Bernardo. Não se está a sentir bem?'
'Na verdade não me estou a sentir nada bem Beatriz.' - responde Bernardo.
'Mas o que se passa? Precisa de um médico? O que é que sente?'
'Não me estou a sentir mal fisicamente. Não preciso de médico nenhum. A única coisa de que preciso é coragem, para lhe dizer o motivo pelo qual não podemos ir de fim-de-semana.'
Não vendo como justificar-se, Bernardo tinha decidido contar a verdade.
'Mas o que se passa de tão grave assim? Não me diga que a sua antiga namorada lhe ligou!'.
Beatriz fala de Maria Rosa, porque sempre sentiu algum ciúme e insegurança pelo que Bernardo tinha vivido com ela. O facto de nunca mais terem falado da antiga namorada aumentava ainda mais a sua insegurança, uma vez que acabava por não saber se algum contacto entre os dois se mantinha.
'Não é nada disso. A Maria Rosa não tem nada a ver com isto. Aliás, não tenho notícias dela já há meses!
'Então diga Bernardo, eu não vou estar para aqui a adivinhar o que se passa consigo! - responde Beatriz cada vez mais ansiosa.
'O assunto tem a ver comigo e só comigo, Beatriz!'
'Estou a ficar ansiosa e preocupada. Diga de uma vez por todas. Somos dois adultos e você esta a agir como uma criança.' - insiste Beatriz.
'A verdade Beatriz é que eu não tenho dinheiro para pagar as despesas do fim-de-semana. O banco cancelou o meu cartão de crédito.' – desabafa Bernardo com um suspiro profundo.
‘Bernardo é só isso? Pensei que era uma coisa mais grave! Assustaste-me.’
‘Mais grave Beatriz? Não achas que a situação é grave? O meu cartão de crédito está cancelado e não tenho dinheiro sequer para pagar a prestação do carro.’ – diz Bernardo já fora de si.
‘Vamos resolver isso facilmente. O fim-de-semana já está cancelado e por isso essa questão já está resolvida. Quanto à questão do carro eu vou emprestar-te o dinheiro para a prestação deste mês.’
E assim foi, naquele mês e nos meses que se seguiram. Bernardo conseguiu saldar algumas das suas dívidas com ajuda de Beatriz e sem que António Augusto soubesse do sucedido. Beatriz sentia-se confortável com a situação, pois ao emprestar dinheiro a Bernardo, a sua insegurança relativamente a ele diminuía. ‘Ele não vai pensar noutra mulher! Agora temos algo mais que nos liga. ‘ – pensava erradamente.
Bernardo por seu lado encontrava-se numa situação tudo menos confortável. Não suportava a ideia de dever dinheiro a Beatriz indefinidamente. Tinha que encontrar uma maneira de lhe pagar o mais rapidamente possível, mas não conseguia encontrar uma solução. A única coisa que poderia fazer era deixar o apartamento da João XXI e tentar alugar um outro mais barato. O carro não poderia vender porque certamente o dinheiro da compra não daria para pagar o empréstimo correspondente.
Para além das dívidas, havia ainda outra questão que provocava mau estar a Bernardo. Era um homem e, por isso, não suportava estar a ser ajudado por uma mulher. Sentia que era a sua masculinidade que estava a ser posta em jogo e isso atingia como uma farpa o seu monstruoso ego de jovem advogado de sucesso.
Foi nesta altura que aconteceu algo que viria a dar nova reviravolta na sua vida.
Após ter recusado vários convites de Beatriz para festas e outros eventos sociais, Bernardo resolve aceitar um convite para uma recepção na Embaixada da Suíça. Claro que o convite tinha sido dirigido pelo Embaixador ao Dr. Vieira de Abrantes e sua esposa, mas António Augusto nem chegou a saber da sua existência, uma vez que era Beatriz quem tratava de todos os assuntos sociais. Como não era usual a embaixada da Suiça fazer este tipo de recepções, Beatriz exigiu que Bernardo a acompanhasse. ‘Bernardo vai estar lá toda a gente importante de Lisboa. É uma óptima oportunidade para si. ‘ – diz-lhe Beatriz ao telefone.
Chegados à embaixada, Beatriz e Bernardo rapidamente encontram várias pessoas conhecidas e depressa se tornam o centro das atenções quando Beatriz, ao ser cumprimentada pelo embaixador, lhe apresenta Bernardo como seu amante. Era assim aquela mulher, adorava ser o centro das atenções. Conseguiu por um momento que todos se calassem e aproveitou a ocasião para dizer a todos que, evidentemente Bernardo não era seu amante, caso assim fosse nunca o diria em público, mas que aproveitava para apresentar aos que ainda não conheciam, o jovem advogado mais promissor de Lisboa.
Bernardo, habituado que estava às excentricidades de Beatriz, aproveitou a ocasião para referir que a sua amiga era uma exagerada e que tinha muito gosto em conhecer todos os presentes. Na realidade o seu ego era alimentado por estes pequenos acontecimentos e, embora lhe fosse difícil admitir, gostava que Beatriz agisse daquela forma.
Para além das pessoas que sempre apareciam nestes eventos sociais da cidade de Lisboa, havia nesta recepção do Embaixador da Suíça um grupo de indivíduos que nem Bernardo nem Beatriz tinham alguma vez visto e que estiveram sempre separados dos outros convidados. Falavam em francês o que indicava que alguns seriam estrangeiros. Suíços pensaram.
A dada altura, enquanto Beatriz falava com um grupo de amigas, Bernardo fica por momentos sozinho. Aproveita para observar a luxuosa decoração da Embaixada. Repara num Picasso que se encontrava mesmo a seu lado e que identifica imediatamente como sendo um dos trabalhos da juventude do pintor. As visitas que fazia a museus e exposições quando namorava com Maria Rosa tinham enraizado em si o gosto pela pintura. Para além disso, as leituras que fazia por lazer eram essencialmente sobre pintores e pintura. Não lhe era, por isso difícil fazer tal identificação.
Estava perdido nestes pensamentos quando sente que alguém lhe toca no ombro. Vira-se imediatamente pensando ser um dos seus conhecidos, mas depara-se com um estranho que, curiosamente, tinha notado no grupo que estivera sempre separado dos restantes convidados.
‘Boa noite Dr. Bernardo Nuno Homem de Sousa, pelo que vejo aprecia obras de arte.’ – disse o estranho.
‘Boa noite. Sim é verdade, não sou nenhum perito, mas sei apreciar aquilo que é realmente bom.’
‘Eu sei que assim é’ – reponde o estranho com um ar de ironia que intimida Bernardo.
‘Já agora, posso perguntar-lhe como sabe o meu nome? Não me lembro de termos sido apresentados.’
‘Não é difícil saber o seu nome, a senhora que o acompanha fez questão de o apresentar a todas as pessoas que aqui estão. ´
‘É verdade. Mas não me lembro que tenha referido o meu nome completo.’ – responde Bernardo, já bastante incomodado. Na verdade o à-vontade com que aquele estranho se lhe estava a dirigir era fora do comum.
‘Não se lembra? Estou a ver que é perspicaz. Tem razão, a Beatriz Vieira de Abrantes não disse o seu nome completo.’
‘ Devo dizer-lhe que não estou a gostar da conversa que estamos a ter. Eu não o conheço e portanto exijo-lhe que me fale noutro tom.’
‘Acalma-te Bernardo, eu sei mais sobre ti do que o que possas imaginar.’ – responde o estranho.
Bernardo nesta altura ficou fora de si. Aquela pessoa que não conhecia de lado nenhum, tinha começado a tratá-lo por tu.
‘Por favor não me trate por tu. O senhor não me conhece, por isso, deixa-se de intimidades.’
‘Baixa a voz Bernardo, não vamos chamar a atenção. Eu chamo-me Alfredo Gomes e negoceio obras de arte. A organização para a qual trabalho tem sede na Suíça e precisamos de um contacto em Portugal porque há uns negócios em perspectiva por aqui. Sei que estás com muitas dificuldades financeiras. Com o que ganhas na Vieira de Abrantes Associados não vais conseguir manter a vida de “playboy” rico que queres para ti. Aprecias arte, sobretudo pintura, o que junta o útil ao agradável. Tens oportunidade de ganhar uma boa quantia em dinheiro que resolverá imediatamente todos os teus problemas. Só tens que fazer o que te dizem, mantendo o bico calado.'
Bernardo não sabia o que responder. Mais do que a proposta que lhe estava a ser feita, incomodava-o o facto daquele homem saber tudo sobre a sua vida. Como era possível que soubesse que estava com problemas financeiros se só tinha comentado tal facto com Beatriz?
‘O que dizes? Aceitas? É a tua salvação financeira.’
‘Penso na sua proposta depois de me dizer como conseguiu essas informação sobre mim.’
‘A organização não brinca, Bernardo. Nós temos os nossos meios para obter informações que só a nós dizem respeito. A Beatriz já vem aí. Fica com um cartão meu. Liga para esse número com uma reposta, amanhã. Sem falta.’
Ao dizer isto o estranho, que Bernardo duvidava que se chamasse realmente Alfredo Gomes, afasta-se para ir de novo integrar-se no seu grupo.
Assim que Beatriz chega junto de si, pede-lhe para saírem imediatamente dali. Não se estava a sentir bem. Estava atónito com o que se tinha passado. Uma dúvida não deixava de o perturbar. ‘Como é que este homem sabe tudo sobre a minha vida?’