sexta-feira, 29 de maio de 2009

5 - Lisboa 1995 (III)

Bernardo, acomoda-se na cadeira. 'Maria Rosa! ‘.

Dois dias depois daquela cena recebeu um telefonema de Maria Rosa. Tinha urgência em falar com ele, que era um assunto do interesse dele.

Encontraram-se no jardim da Gulbenkian. Tinham marcado para as cinco da tarde.

Quando Bernardo chegou, passavam cinco minutos das cinco. Maria Rosa estava de óculos escuros. Bernardo aproximou-se e inclinou a cabeça para a beijar. Ela desviou a cara e esticou-lhe a mão:

'Boa tarde Bernardo, estás bom? ‘

'Olá Maria Rosa. Como estás? ‘, Disse ele a medo e com a voz trémula.

'Estou bem, pedi para nos encontrarmos porque há uma coisa que deves saber...' e sem rodeios Maria Rosa continuou '... Estou grávida'

Bernardo ficou paralisado em frente a ela. Começou a ver a vida dele toda a mudar de rumo. A ver-se a casar na terra com Maria Rosa, a ter de arranjar outro emprego. Beatriz nunca iria aceitar o casamento deles. Já via a seguir a esta criança, outras a virem. A viverem num apartamento na margem sul, a ter de fazer a travessia, de cacilheiro, todos os dias...

'Bernardo, estás a ouvir-me? ‘

A voz de Maria Rosa chamou-o à realidade. ‘Sim, estou-te a ouvir…’

‘…e eu tenciono ter este filho! ‘

‘E agora o que me vais dizer a seguir? Que queres casar, porque és uma rapariga decente…’

‘Pára Bernardo. Nada disso. Só vim aqui dizer-te que ias ser pai! O resto não me interessa. ‘

‘Já contou aos teus pais? ‘, perguntou Bernardo no momento em que começou a imaginar o escândalo que iria ser em Alpedrinha.

‘Não, vou este fim-de-semana a casa e vou contar tudo aos meus pais.’

‘Tudo?’

‘Sim, tudo. Vou-lhes dizer que espero um filho teu, que acabamos tudo e que vou ter este filhos…’

‘Espera lá menina. Como é que sei que o filho é meu!?’, perguntou Bernardo cinicamente. ‘Ninguém…’

Não conseguiu acabar a frase. Maria Rosa deu-lhe uma bofetada e, antes de lhe virar as costas disse: ‘Não te vou responder. Esta é pelo outro dia!’


Bernardo sentado na cadeira de António Augusto passa a mão pela cara. Ainda sente a marca dos dedos de Maria Rosa na cara. Ainda sente a humilhação daquele momento. Nunca uma mulher lhe tinha batido e muito menos esperava-o de Maria Rosa.

‘Mosca morta!’, resmunga, com a mão ainda na cara.


No fim-de-semana que se seguiu ao encontro no jardim, Bernardo foi também à terra. Ia decidido a resolver o assunto de uma vez por todas. Ia falar com o pai de Maria Rosa e dizer-lhe que queria casar com ela. Depois via-se. Talvez não fosse má ideia casar…

Entrou no autocarro e, perante o ar dela de assustado e surpreendida, sentou-se a seu lado.

‘Que fazes aqui?’, perguntou ela entre dentes.

‘Vou à minha terra, sou de Alpedrinha, lembras-te? Ou não posso?’

‘Podes, claro que podes. Estou admirada, como arranjaste tempo para ir à terra…’

‘É, tenho de ir resolver um assunto…’

‘Um assunto!? Deixa-me adivinhar: vais falar com o pai da tua antiga namorada e vais-lhe dizer que ela está grávida e que não queres casar com ela porque não tens a certeza se o filho é teu…’

‘Conheces-me mesmo mal! Achas que eu… pois desculpa o outro dia. Não foi sentido aquilo. Claro que o filho é meu.’

‘Bernardo, de uma vez por todas, eu não vou casar contigo e este filho é meu, só meu! E agora, por favor, muda de lugar. Não te quero aqui a meu lado.’

‘Não te estou reconhecer! Tu és uma sonsa. Este tempo todo a fazeres-te de santinha. Sonsa!’

Levantou-se e foi sentar-se no fundo do autocarro.

Estava decidido a levar a farsa até ao fim. No Domingo no fim da missa esperou pela família de Maria Rosa à porta da igreja e comunicou-lhes que queria juntar as duas famílias, pois tinha um assunto para tratar com eles.

‘Claro meu rapaz. Aparece mais os teus pais lá em casa depois do almoço. Para almoçar já é tarde e jantar não dá, mas pronto lanchamos e falamos.’

Maria Rosa era a única ausente. Tinha ficado em casa. Estava indisposta e não tinha ido à missa.

As duas famílias cumprimentaram-se com abraços apertados a antever o motivo da reunião. O anuncio do casamento dos seus filhos. Só podia ser isso…

Assim foi. Depois de almoço, Bernardo vestiu um fato e pôs uma gravata de seda de que gostava particularmente. Tinha sido um dos presentes mais recentes de Beatriz. Sentia-se poderoso com ela. Era de uma marca italiana cara e era a gravata que usava naquele noite em que pela primeira vez se sentiu um verdadeiro homem. Aquela noite inevitavelmente tinha marcado o poento de viragem da vida dele. Jamais a esqueceria. Para ele tinha sido naquela noite que perdera a virgindade e não naquele distante dia de verão com Maria Rosa…

Quando Maria Rosa abriu a porta e viu Bernardo ficou se respiração. Conteve-se quando viu os pais de Bernardo atrás dele com um sorriso de orelha a orelha.

Cumprimentou Bernardo como era a habitual e logo se apressou a cumprimentar os ‘futuros sogros’.

Havia uma mesa posta para o lanche.

Bernardo sentia-se desconfortável e não era o assunto da visita que o punha assim, mas o ambiente. Sentia que já não pertencia ali. ‘Que pobreza!’, era o que pensava. Tudo lhe parecia mal, tudo lhe parecia ridículo. Só queria tratar do assunto e desaparecer. Preocupava-o ter de conviver com aquela gente por para ávida toda, mas havia de pensar numa forma de resolver essa parte. Agora só tinha mesmo era de sair dali, mas depois de resolver o problema. E antes que outras conversas, começou.

‘Bom, o motivo que me traz aqui é o mais esperado e obvio…’ fez uma pausa para procurar Maria Rosa, que estava sentada em frente a ele ao lado da mãe. ‘…eu e a Maria Rosa queremos casar. Achamos que já é altura certa. Ela…’

‘… ela não quer casar contigo!’ , interrompeu Maria Rosa. E continuou: ‘ Ele só quer casar comigo porque eu estou grávida e tem remorsos porque me andou a trair!’ E perante o olhar incrédulo de todos continuou: ‘Andou a trair-me com a mulher do patrão, uma mulher que podia ser mãe dele!’

O ar de espanto generalizou-se nas pessoas da sala. Bernardo, por incrível que parecesse, sentia-se aliviado com as palavras de Maria Rosa. Com o ar mais cândido deste mundo, disse: ‘Ó meu amor, tínhamos combinado que este seria o nosso segredo, que não havia necessidade de te expores desta forma!’ E continuou. ‘Ela tem andado muito nervosa com esta questão da gravidez. Como pessoas católicas que somos, sentimo-nos mal com o sucedido, mas está, está… e também não é assim nada de tão grave…a final mais tarde ou mais cedo íamos casar. É só o antecipar das coisas!’

Maria Rosa chorava compulsivamente, enquanto era reconfortada pela mãe que ia dizendo: ‘Ó filha, não te martirizes. Nós estamos aqui para vos apoiar. Ninguém precisa de saber, mas a nós podias ter dito. Nós somos teus pais…’

‘Ó Mãe,…’, Maria rosa não conseguia falar que não fosse aos soluços, …’ mas eu não quero casar. Ele anda a fazer coisas horríveis…’. E sem dizer mais nada levantou-se e refugiou-se no quarto.


Enquanto muda de posição na cadeira, Bernardo, recorda como foram as coisas depois desse dia.


Ele voltou para Lisboa e Maria Rosa ficou na terra. Não houve casamento. Ninguém conseguiu convencer Maria Rosa. Quanto a ele, manteve sempre a sua posição e sempre ia insistindo no casamento e cada nega de Maria Rosa soava-lhe a uma vitória.

Soube que Maria Rosa voltou para Lisboa uns meses mais tarde, quando a barriga se começou a notar. Era para evitar o falatório da aldeia. Tinham decidido que Maria Rosa ficaria em Lisboa onde nasceria o filho. Ficaria a viver com Rosalina, a sua antiga colega de quarto na residência universitária.

Mesmo assim o falatório na aldeia não se evitou. ‘A Maria Rosa estava grávida e tinha-se recusado a casar com o Bernardinho’. ‘Se calhar o filho não é dele, é por isso. Estas raparigas vão para Lisboa, apanham a rédea solta e é isto! Coitado do Bernardinho, pediu-a em casamento e tudo e ela não aceitou… é porque tem outro em Lisboa… até está para lá!’.

E foi assim que todos ficaram do lado de Bernardo.


Bernardo é chamado ao presente com o toque do telemóvel. Endireita-se na cadeira, como se o pudessem ver, ajusta o nó da gravata e atende.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

5 – Lisboa 1995 (II)

Bernardo, deslumbrado com a sua situação profissional e sentimental, não sabia como agir face a Maria Rosa. Cada vez era mais difícil enfrentá-la cara a cara. Os seus olhos tristes começaram a despertar no jovem advogado de sucesso um sentimento de pena, que o deixava incapaz de colocar um ponto final naquela relação que já nada lhe dizia. Havia ainda o problema dos pais da rapariga e dos seus próprios pais que aguardavam o regresso dos dois jovens e a celebração do seu casamento. Eram um casal modelo na terra, um exemplo de uma linda história de amor. De origens humildes, os jovens estavam a triunfar em Lisboa e voltariam à terra para casar e trabalhar. Voltar já não estava nos planos nem de Bernardo nem de Maria Rosa, mas casar era um problema maior. A jovem continuava apaixonada e começava a sentir-se insegura. Era nítido que Bernardo andava a evitá-la uma vez que quase todos os dias lhe dizia que tinha que ficar no escritório da Vieira de Abrantes Associados até tarde uma vez que era o advogado mais jovem e tinha que demonstrar o que valia ao doutor António Augusto.

Na realidade Bernardo passava muito tempo no escritório e não eram raras as noites em que saía exausto a altas horas da madrugada. Mas não era só isso, as saídas com Beatriz tinham-se tornado um vício a que não conseguia dizer que não. Sentia-se muito bem na sua companhia e as festas eram animadíssimas, cheias de gente bonita e sofisticada que o fascinava.

Os fins-de-semana em Alpedrinha tornaram-se raros. Dizia aos pais o mesmo que a Maria Rosa, o trabalho ocupava-lhe todo o seu tempo e era impossível não trabalhar aos Sábados e Domingos. Para não dar a entender à família que algo de errado se passava, Maria Rosa acabava também por ficar em Lisboa. Ficava sozinha e quase não saía. Tinha vivido quase exclusivamente para, e em função de Bernardo e praticamente não tinha amigos.

Quanto mais se afastava de Maria Rosa, mais Bernardo se aproximava e desejava Beatriz. Aos seus olhos a mulher de António Augusto era uma verdadeira Deusa. Desejava-a ardentemente e verificava que o seu sentimento era correspondido.

‘Bernardo, está lindíssimo hoje, um verdadeiro galã. A gravata que lhe dei fica-lhe lindamente. Olhe que eu ainda lhe tiro a gravata. A gravata e o resto’- diz-lhe Beatriz numa festa em frente a todos os seus amigos. O jovem envergonha-se, fica vermelho como um pimentão, não consegue articular palavra. ‘Estou a brincar, meu querido, mas lá que está lindíssimo está’.

Estes piropos de Beatriz, uma mulher com uma experiência de vida enorme, provocavam em Bernardo um sentimento ambíguo, por um lado odiava-a, porque o envergonhava em frente de toda a gente, por outro, desejava-a cada vez mais.

Criado no seio de uma família pobre, mas honrada, estas eram situações a que não estava habituado. Valores como o respeito, a honra e a fidelidade estavam enraizados na sua maneira de ser. ‘Mas eu sou homem e os homens são fracos.’ – pensava.

Trair Maria Rosa era uma situação que queria evitar a todo o custo. Nunca tinha tido outra mulher na cama que não a sua namorada. Aliás, nunca tinha beijado nem desejado outra mulher.
No dia em que fez amor com Beatriz, tudo mudou para Bernardo. Era tarde e estava ainda a trabalhar no escritório, completamente só. Tinha ligado a Maria Rosa a dizer que ficaria a trabalhar, embora fosse sexta-feira e tivessem combinado ir ao cinema. Sentia-se aliviado por não lhe ter mentido, apesar de tudo, não gostava de mentir-lhe, ela não merecia. Enredado na quantidade imensa de documentos que tinha em cima da secretária, não notou que alguém acabara de entrar sorrateiramente e o observava com um olhar de desejo. Beatriz tinha mais uma qualidade, quando queria, conseguia tornar-se quase invisível.

Passaram uns bons minutos até que o jovem notasse a presença da sedutora mulher. Quando a viu, reagiu com um misto de surpresa e excitação. Não era raro isto acontecer quando estava com Beatriz, mas o facto de se encontrarem sozinhos no escritório do marido da própria, aumentava o seu desejo.

‘Então Sr. Doutor, ainda está a trabalhar a estas horas? É sexta-feira, não foi encontrar-se com a sua namorada?'

Beatriz tinha-se vestido a rigor para a ocasião. Tinha um vestido vermelho escuro de tal forma justo que mostrava mais do que escondia. Aproximou-se da secretária do atrapalhado advogado e inclinou-se fazendo com que fosse impossível a Bernardo não reparar nos seus magníficos seios que desde que a conhecera desejava tocar.

‘É hoje que me vai deixar tirar-lhe a gravata... e o resto?’

‘Beatriz, sejamos razoáveis, estamos nos escritórios da empresa do seu marido. Não podemos, não devemos...’ – diz Bernardo, pensando ao mesmo tempo que a situação de perigo em que se encontravam ainda tornavam tudo muito mais excitante.

‘Não podemos porquê? O Bernardo tem algum problema? Não gosta de mim?’

‘Gosto, mas… e a Maria Rosa’?

‘Você não gosta da Maria Rosa. Ela não é mulher para si. Se fosse, estaria agora com ela, ou não?’
Bernardo não conseguiu articular mais nenhuma palavra. Deixou-se conduzir pelos encantos de Beatriz.

Mulher experiente nas artes da sedução e do sexo, Beatriz provocou em Bernardo sensações que o jovem nunca pensou que existissem. Amaram-se ardentemente durante toda a noite. Foram arrojados ao arriscarem ser descobertos pelo segurança numa das suas rondas nocturnas. Usaram o gabinete de António Augusto, numa atitude provocatória que levou Bernardo a explodir de prazer.

Beatriz, ao contrário de Maria Rosa, gostava de comandar, chegava a ser bruta com Bernardo, dando-lhe ordens e chamando-lhe todos os nomes possíveis e imaginários. Batia-lhe na cara nos momentos mais intensos e o jovem deixava-se levar pela emoção e prazer.

Já era manhã quando Beatriz saiu do escritório com um ‘Adeus Bernardo, até logo…’.

Bernardo não saiu logo. Ficou sentado na sua cadeira com um olhar extasiado. Nunca tinha sentido nada assim. Não imaginava que uma mulher lhe pudesse provocar tais sensações. Queria, mais, queria muito mais…

Quando, horas mais tarde, acordou do torpor em que mergulhou desde a saída de Beatriz, Bernardo sentia-se um homem novo. De repente Maria Rosa parecia ter deixado de ser um problema. Ia resolver as coisas com ela de uma vez por todas. Beatriz tinha razão, não era mulher para ele.

Ao dirigir-se a pé para o seu quarto numa pensão da baixa, as mais variadas ideias vão aparecendo na sua cabeça. Vai, de uma vez por todas, sair da pensão. Com o ordenado que ganha, pode perfeitamente alugar um apartamento, não precisa de nada luxuoso, mas precisa de um espaço com mais privacidade, agora que é amante de uma senhora da alta sociedade lisbonense. Vai também pedir um empréstimo para comprar um carro. Acaba por gastar uma boa quantia mensal nos táxis que utiliza para ir e vir das festas e, para além disso, já anda aborrecido de ter que usar o metro para chegar ao escritório. ‘Sou um advogado de sucesso, não tenho que andar de metro.’ – vai pensando com os seus botões.

Ao entrar na pensão, dá de caras com Maria Rosa que o espera na entrada.

‘O que fazes aqui Maria Rosa?’

‘Espero-te Bernardo, esqueceste-te do que tínhamos combinado para hoje?'

Bernardo olha para o relógio e verifica que é quase uma da tarde. Tinha-se esquecido completamente que, para compensar a sua ausência no dia anterior, tinha combinado um almoço com Rosa Maria seguido de um passeio na zona de Belém.

'O que se passa contigo, parece que não dormiste. Ainda estás com a roupa que usas no escritório. Não dormiste em casa?'

Atrapalhado, lá se explicou como pode. Que tinha ficado a trabalhar até muito tarde e acabado por adormecer num dos sofás do escritório, foi o que lhe ocorreu dizer. Afinal, em parte, era verdade. Tinha mesmo passado a noite no escritório.

'Vou só tomar banho, já volto aqui para sairmos. Desculpa o meu atraso.'

'Subo contigo.'

'Não! Não sobes, ficas aqui!' - responde intempestivamente Bernardo.

Assustada com esta atitude do namorado, Maria Rosa não respondeu e decidiu sentar-se num dos pequenos sofás da recepção da pensão.

Enquanto subia as escadas, Bernardo pensava no que tinha acabado de acontecer. Nunca tinha sido indelicado com Maria Rosa, aliás, nunca tinha sido indelicado com mulher alguma, e agora de repente e sem se dar conta tinha reagido bruscamente a um simples pedido da sua namorada, ao ponto de a deixar visivelmente assustada.

Não se reconhecia naquela atitude, mas de facto não se sentia mal por ter reagido daquela forma, pelo contrário, sentia até uma certa excitação, qualquer coisa estranha que não sabia bem definir, mas que lhe provocava um bem-estar que não reconhecia.

Tomou um banho quase frio e desceu ao encontro de Maria Rosa que o esperava ansiosa.
'Bernardo, o que se passa contigo? Não percebi a tua reacção de há pouco. Quando venho aqui costumo subir contigo ao teu quarto enquanto espero por ti.' - diz.

'Desculpa Maria Rosa. Dormi pouco e mal esta noite e não estava de muito bom humor. Foi só isso. Não leves a mal.'

'Que a tua atitude não se repita, por muito cansada que eu esteja, recebo-te sempre de braços abertos e com um sorriso. Aliás, os meus dias não têm sido fáceis, mas tu nem tens tempo para saberes de mim.'

'Pois é, agora acusas-me de não querer saber de ti, qualquer dia vais dizer que eu te traio com outra mulher.'

Ainda hoje Bernardo não sabe como aquelas palavras lhe sairam da boca. Na realidade ele tinha acabado de trair Maria Rosa e a necessidade que teve de abordar o assunto de forma tão brusca e inesperada, é coisa que ainda hoje não consegue compreender.

'E não andas a trair-me?' - pergunta-lhe Maria Rosa corajosamente mas temendo a resposta.

'Não, não ando.' - responde.

'Tornaste-te um mentiroso Bernardo. Eu sei com quem andas a dormir...'

Antes que Maria Rosa pudesse dizer mais uma palavra, Bernardo explode num ataque de fúria agredindo-a com um soco na cara que a derrubou para cima do sofá.

'O que se passa? Tenha respeito pela senhora, não se esqueça que está num local público.' - diz o pequeno homem, recepcionista e dono da pensão, que assistira a tudo.

'Não se meta nisto, ou quer levar levar um soco também?' - reage Bernardo.

'E tu vai-te embora, desaparece da minha frente, que eu tenho mais que fazer do que aturar as tuas acusações de mulher fraca e insegura. Não serves para mim.'

Maria Rosa, sai dali a correr. Estava cheia de dores na cara e chorava desalmadamente. Chorava de dor, de emoção e tristeza. Aquele já não era o seu Bernardo.

Ao vê-la sair, Bernardo pensou: 'Este problema já está resolvido'. Estava a ser frio e calculista, mas curiosamente, isso não o incomodava muito. Tinha voltado a sentir algum prazer ao agredir Maria Rosa e não sabia porquê.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

5 - Lisboa 1995

Quando Beatriz fechou a porta, Bernardo, enquanto num acto de fúria bate com os punhos na secretária, quase aos berros diz: ‘Malditas! Tal mãe, tal filha. Duas inúteis! ‘

Estava sentado à secretária, na cadeira de António Augusto, marido de Beatriz. Não tinha sido fácil chegar àquela cadeira. Lembrava-se bem do dia em que chegou aquele escritório. Rapaz do interior, de uma aldeia perdida entre a Covilhã e o Fundão. Só com a bolsa de estudo da Gulbenkian tinha sido possível ir para Lisboa tirar o curso.

Aluno exemplar, entre os melhores do curso, não foi difícil conseguir estágio. Foi parar ao escritório de António Augusto por acaso. Estava ele no último ano do curso, quando um professor lhe perguntou se ele já tinha em vista onde estagiar.

Respondeu-lhe que não, até porque era assunto em que ainda não tinha pensado. Foi aí que o professor lhe propôs o escritório de Advogados Vieira de Abrantes e Associados.

Bernardo não era dado a noitadas nem a excentricidades. A sua vida em Lisboa, até então tinha sido entre a universidade e a residência universitária, onde vivia. Com a namorada encontrava-se nas cantinas ou nos fins-de-semana em que não iam à terra.

Maria Rosa e Bernardo conheciam-se desde sempre. Maria Rosa era filha do caseiro de uma quinta perto da casa de Bernardo e tinham, em conjunto grandes planos para o futuro. Maria Rosa estudava também em Lisboa. Cursava germânicas na Universidade de Letras.

O lugar predilecto para se encontrarem era o jardim da Gulbenkian. Diziam que era o jardim do ‘padrinho’ deles, pois era graças a bolsas de estudos da fundação com o nome dele que estavam a estudar em Lisboa.

Quando partiram de Alpedrinha tinham grandes planos. Voltar com os cursos, ele abrir um escritório em Seia e ela arranjar uma colocação como professora numa escola da zona.

Deslumbraram-se com Lisboa e esse deslumbramento fez-lhes crescer a ambição. Agora, quase na hora de regressar, já não queriam. Ficar em Lisboa passara a fazer parte dos planos deles. Maria Rosa ainda tinha pelo menos mais dois anos de curso e Bernardo o estágio para fazer. Até lá nada mudaria.

Para a entrevista com o Dr. Abrantes, vestiu o fato, o único que tinha e que tinha sido presente dos pais para a imposição de insígnias.

Foi recebido pela secretária que lhe pediu que aguardasse. Mal entrou no edifício sentiu-se num outro mundo, num mundo que não era o seu, mas que logo o ambicionou para si. Em poucos segundos as suas certezas mudaram. Era aquilo que queria para ele.

Recorda agora, que quando se viu em frente do Dr. Abrantes, sentiu-se mal. Mesmo com o fato novo, a melhor roupa que tinha, sentiu-se um maltrapilho.

Sorri enquanto se lembra do fato cinza rato que o pai lhe ofereceu para a imposição de insígnias. ‘Rapaz, não há dinheiro para trajes. Eu e tua mãe mandamos fazer um fato no alfaiate em Seia e é a nossas prenda de curso. Assim também já ficas com um fato para quando fores trabalhar’

Ao contrário da imagem que ele tinha dos advogados de nome, o Dr. Abrantes era um homem ainda novo. Teria passado há pouco a barreira dos cinquenta. Comparado com os professores, advogados de renome, que ele conhecera na universidade, era ainda uma criança.

Tinha um ar sereno e era um homem muito bem parecido, era muito simpático e depressa Bernardo se sentiu confortável na sua presença.

Logo na primeira entrevista, tudo ficou acordado.

A vida de Bernardo, desde que passou a porta de entrada daquele escritório, ficou virada ao contrário. Os seus planos com Maria Rosa deixaram de fazer sentido e a sua ambição crescia a cada dia. Tornou-se um workholick. A relação com Maria rosa começou a ressentir-se e as discussões eram frequentes.

O Dr. Abrantes era o seu ídolo. Tudo que ele fazia, tudo que ele dizia eram lei. Bernardo tentava imitá-lo em tudo. O seu sonho passou a ser só um: ocupar aquela cadeira onde ele agora se sentava.

Um dia Beatriz foi ao escritório. Coisa rara, tão rara que Bernardo só a conhecia de nome. Na passagem do seu gabinete para o de António ao olhar para a porta vê chegar uma senhora muito bem parecida. Ouviu Sónia chamar-lhe de Beatriz. ‘É esta então a mulher do doutor! ‘, Pensou. Abrandou o passo e ao passar por Sónia parou. Fixou o olhar em Beatriz e ficou a olhar para ela. ‘Que mulher! ‘, Pensou. Ficou pasmado a olhar para ela. Perfeita!

Voltou à realidade com Sónia: ‘Sim, Dr. Bernardo, que deseja? ‘

Bernardo ia dando uma desculpa, sem tirar os olhos de Beatriz, que habituada a situações destas, cortou o gelo com: ‘Boa tarde, eu sou a Beatriz Vieira de Abrantes, esposa de António Vieira de Abrantes. E o senhor é…? ‘

‘Bernardo Homem de Sousa. Muito prazer. ‘

Entretanto António apareceu à porta do gabinete e:

‘Beatriz, minha querida por aqui? ‘

‘Olá António Augusto. Aconteceu uma coisa muito grave com a Maria! ‘

‘Com Maria!? Mas ainda ontem falei com ela e estava tudo bem! ‘

‘Isso e porque você que é um coração de manteiga! Ela quer ir viver com aquele namorado músico. Aquele que tem uma crista! ‘

António Augusto esboçou um sorriso, enquanto pegava no braço de Beatriz e: ‘Vamos para o meu gabinete. Lá estamos mais à vontade.’

Bernardo ficou parado no mesmo sítio onde estava desde que parara em frente de Beatriz. Limitara-se a rodar em torno dos pés para acompanhar Beatriz com o olhar até ela desaparecer atrás da porta do gabinete de António.

Beatriz passou a ir com mais frequência ao escritório. Sempre que lá aprecia Bernardo fazia por se fazer mostrado e da parte de Beatriz também se notava que ela o procurava.

Cada vez se sentiam mais atraídos um pelo outro. Bernardo andava pensativo.

Maria Rosa começou a perceber que algo se passava. Ele estava distante, implicava com coisas até então secundárias para ele, tais como os decotes, o comprimento das saias, o cabelo.

Sem se aperceber bernardo comparava todas as mulheres a Beatriz. Ela era a mulher perfeita. Nunca tão grande atracção tinha sentido por alguém como sentia por Beatriz.

Numa das visitas ao escritório, Beatriz convidou Bernardo para jantar. Bernardo não aceitou de imediato, mas depois da insistência de António Augusto, acabou por aceitar.

Ficou eufórico, perdido. Estava num sino. Ia jantar a casa de António Augusto. Estava também com receio, receio de não se mostrar à altura. Ele, um serrano, filho de um pastor e de uma queijeira, ia jantar a casa de um dos mais prestigiados advogados de Lisboa.

O jantar foi marcado para as oito horas daquele dia. Bernardo vestiu o seu fato preferido. Sim, agora já não tinha só o fato que os pais lhe haviam oferecido. Com o primeiro salário, de estagiário, tinha comprado dois fatos. Por sorte tinha coincidido com uma época de promoções e tinha conseguido comprar dois fatos de um corte mais moderno.

No caminho para casa parara no centro comercial e comprara uma gravata nova. A ocasião justificava tal extravagância.

Foi um jantar agradável a quatro: António Augusto, Beatriz, Toninha e Bernardo. Foi o princípio de uma nova fase na vida de Bernardo. Àquele jantar muitos outros se seguiram.

O jogo de sedução entre Bernardo e Beatriz era cada vez maior.

Bernardo cada vez mais conquistava a confiança da família. Era visita habitual da casa dos Vieira de Abrantes e passou a passou a acompanhar Beatriz a alguns eventos, que Beatriz adorava, mas que António Augusto abominava, simplesmente. Tinham tudo para se tornarem amantes, Beatriz e Bernardo. Todas as cartas estavam a seu favor. Atracção mutua, ambição de Bernardo e a loucura de Beatriz. Os encontros entre eles eram cada vez mais assíduos. António Augusto de nada se apercebia, ou não queria aperceber. Beatriz andava feliz, não o incomodava com as suas futilidades. Para ele era suficiente. Bernardo, esse andava nas nuvens. António Augusto tinha-o contratado depois de alguns sucessos em tribunal e Beatriz presenteava-o com coisas roupas, perfumes e relógios caros. Coisa que ele, quando viva em Alpedrinha e fazia planos para o futuro não incluía, simplesmente porque não sabia que existiam!

Começava a deixar de haver espaço para Maria Rosa, que sofria em silêncio.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

4 – Lisboa

Beatriz desliga o telefone e olha para Bernardo com um ar irritado.

- Não consegui que ela me dissesse onde está. Não sei qual é a ideia dela, Bernardo. Acha qua o facto de ter fugido pode interferir nos nossos planos?

- Beatriz, que incompetência da sua parte! Como é que não lhe arrancou essa informação? É claro que precisamos da Maria. Ainda há coisa para assinar e aquele negócio do Manet ainda pode ser posto em causa.

- Bernardo, desculpe, eu... - Beatriz calou-se. Bernardo olhava para ela com aquele olhar fulminante que tão bem conhecia. Não adiantava qualquer justificação.

- Saia Beatriz. Vou pensar o que se pode fazer...

Beatriz prepara-se já para sair quando Bernardo volta a interpelá-la.

- Beatriz, está a pensar sair de Lisboa?

- Estou de partida para o Algarve, já lhe tinha dito. De qualquer forma se achar que posso ser útil aqui, posso adiar a minha viagem por uns dias…

- Fique. Posso precisar de si. É fundamental para nós que encontremos a Maria. Ela tem que regressar a Lisboa, nem que seja à força. Como sabe, a Beatriz pode ser o único elo de ligação entre nós. Tem alguma ideia sobre a localização da sua filha?

- Não, não tenho. Se tivesse já lhe tinha dito. A Maria quase nunca viajou sozinha desde que se casou consigo e nesse período foi sempre o Bernardo quem decidiu os destinos e marcou as viagens. Por acaso sabe qual a cidade preferida da Maria?

- Não, isso nunca me interessou particularmente…

- Nem a mim. Agora talvez estejamos a pagar por isso.

- Talvez tenha razão. Vou pensar numa forma de agir. Pode ir Beatriz.

Beatriz retira-se sem dizer mais nada. Detesta que as coisas corram mal com Bernardo, sabia que ficaria a perder. Ele é um será arrogante e desprezível, mas, por enquanto está totalmente dependente dele. Não tinha sido possível obter qualquer pista sobre a localização de Maria, nem sequer havia qualquer ruído de fundo durante o telefonema que permitisse identificar em que país estaria. “Ultimamente, Maria não tem viajado sozinha, está muito debilitada. Deve ter pedido a ajuda de alguém, aliás, não me pareceu que estivesse sozinha...” - pensou. “Que chatice, devia ter dito isto ao Bernardo, assim não ficaria tão mal vista”.

Aos 62 anos, Beatriz é uma mulher esbelta e ainda conserva alguns traços de jovialidade e bom gosto que permitem adivinhar ter sido muito apreciada pelos homens e invejada por outras mulheres. Apesar da sua idade ainda hoje causa impacto nos locais que frequenta e mesmo mulheres mais novas vêem-se muitas vezes ofuscadas com a sua presença. Nascida no seio de família abastada de Lisboa, os seus objectivos de vida sempre se limitaram a ter dinheiro e marido rico. Não tinha muito jeito para os estudos e curso superior foi coisa que nunca fez nem quis fazer. Gostava de se divertir e o seu pai, que lhe achava muito graça nunca lhe faltou com dinheiro para todas as suas extravagâncias. Vivia de festa em festa na Lisboa boémia dos anos sessenta e fazia-se acompanhar pelos jovens mais pretendidos de então, causando inveja nas suas amigas e nas mulheres em geral.

Foi numa destas festas que conheceu António Augusto, um jovem advogado a viver na altura em Santarém mas a trabalhar num reputado escritório da capital. Apesar de muito inteligente, António Augusto era extremamente desajeitado com as mulheres. Envergonhava-se de tal forma que quase não conseguia manter uma conversa por mais trivial que fosse. Ao ver Beatriz pela primeira vez António Augusto ficou deslumbrado mas não conseguiu dirigir-lhe nem palavra e foi motivo de chacota entre os seus amigos, mais boémios e aventureiros. Apaixonaram-se, ele pela beleza dela, ela pelo dinheiro e carreira dele.

Casaram um ano mais tarde com a pompa e circunstância exigidas pelas famílias. O casamento foi correndo dentro dos padrões da alta sociedade da altura e o nascimento de Maria da Graça e Maria Antónia, atenuaram por uns bons anos as diferenças entre os dois.

As duas crianças crescem no seio de uma família aparentemente feliz, embora o pai acabe por estar mais presente que a mãe. Beatriz nunca deixou a sua vida boémia e os seus hábitos quotidianos não incluíam passar tempo com Maria e Toninha. Pelo contrário, António Augusto, cuja carreira como advogado se consolidou de tal forma que lhe permitiu criar uma firma própria, sempre encontrou tempo para estar com as filhas. Tinha uma afinidade particular com Maria, que embora se parecesse fisicamente com Beatriz, tinha personalidade muito mais próxima da sua. Toninha, por outro lado era como a mãe, preocupava-se unicamente com a aparência, quando foi para a escola queria sempre ter o vestido mais bonito da turma. Embora com estas diferenças, António Augusto nunca fez qualquer distinção entre as duas filhas. Pelo menos até que fossem adultas e começassem a fazer as suas opções de vida.

Quando as meninas cresceram e saíram de casa já não existia afinidade alguma entre o casal. António Augusto passou a viver exclusivamente para o trabalho e Beatriz para as festas. Uma vez que já não era preciso manter aparências dentro de casa, passaram a dormir em quatros separados e a incompatibilidade de horários era tal, que quase nem se cruzavam. Esta situação era a mais conveniente para os dois. Saíam juntos para alguns eventos sociais aos quais António Augusto não podia faltar devido às suas obrigações profissionais.

Ao morrer de ataque cardíaco no início do ano, António Augusto, deixa uma fortuna considerável à mulher e filhas mas com administração de Bernardo o seu genro de confiança. Mãe e filhas vêem-se, desta forma, totalmente dependentes de um homem ganancioso cujo único objectivo é ficar com todo o dinheiro e bens para si.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

3- Paris (I)

7h30m, toca o despertador. Rodrigo acorda estremunhado a tentar perceber onde está. Está vestido e no sofá!

Logo lhe vêm à memória os acontecimentos de véspera. Apressou-se a desligar o despertador. Maria dormia no quarto ao lado. Não a queria acordar.Levantou-se e espreitou pela porta do quarto entreaberta. Maria dormia. O mesmo ar sereno de sempre. Continuava na mesma. Ao contrário de Rodrigo para quem uma simples preocupação eram motivo para uma noite sem dormir, ainda estava para vir problema que tirasse o sono a Maria.

Em Londres, quando acabou a relação com Mike, como sempre, Maria foi chorar no ombro de Rodrigo. Depois de chorar 'baba e ranho', adormeceu com a cabeça no colo dele. Resultado, uma noite em claro para Rodrigo enquanto Maria dormia a sono solto. Para ele não tinha sido sacrifício nenhum. Poderia tê-la tido a vida inteira no colo dele.

Nunca se cansaria. Assim como agora. Que ela não acordasse, que ele ficaria ao alto junto à porta a vê-la dormir.

Encostou a porta e foi para a cozinha preparar o pequeno almoço. Maria podia acordar a qualquer momento e, conhecendo-a como conhecia, acordaria cheia de fome.

Pôs café a fazer, telefonou para a porteira a pedir pão, queijo, leite e fruta e foi tomar banho.

-Bonjour monsieur. Comment ça va?

Rodrigo, que entretanto tinha ido para o computador ler os emails ao ouvir a voz de Maria, virou-se com um sorriso e respondeu:

-Como está a princesa? Dormiu bem?

-Muito bem, mas acordei cheia de fome.- respondeu Maria, enquanto caminhava na direcção da mesa que entretanto estava posta com um farto pequeno almoço.

-Não te esqueceste dos meus hábitos- continuou enquanto punha sumo de laranja num copo, - sumo, flocos e fruta… marveilleuse!'

-Pois, faz-se o que se pode. Temos de cativar os nossos hospedes!', disse Rodrigo em tom de brincadeira.

-Falando sério, como estás?- Rodrigo sabia que Maria não era de falar no momento, mas que passada crise ela tinha necessidade de falar.

-Estou melhor. A almofada sempre foi a minha melhor conselheira. A minha vida está virada do avesso! Todos me desiludiram…

'… mas e o Bernardo? Deixaste-o?- perguntou Rodrigo.

-Mais ou menos. Desde que o meu pai morreu a minha vida deixou de ter jeito!

-É uma longa história, a do Bernardo…-respondeu com um ar pensativo …saiu melhor que a encomenda!

-Mas não era o homem de confiança do teu pai?

-Pois aí é que está. Enquanto o meu pai foi vivo, ele conseguiu manter máscara e era o marido mais charmoso, o advogado mais competente. Tudo que ele fazia ou dizia era lei. Eu nunca tinha razão. Eu é que tinha mau feitio. Conseguiu convencer o meu pai de que eu não devia trabalhar, cortou-me o contacto com algumas pessoas e controlava todos os meus passos! As minhas roupas eram controladas por ele… Há três anos fomos convidados para o casamento da minha amiga Carlota Avilez, lembras-te dela?

-Sim, lembro, aquela tua amiga morena de Portalegre, que passou uns dias contigo em Londres quando lá vivíamos...-respondeu Rodrigo

-… Sim, é essa. Nós éramos as melhores amigas. Eles nunca se deram! Ela sempre me disse que ele não era boa peça e ele sempre disse que ela era uma fútil e que era uma má companhia. E quando ela casou foi lá a casa convidar-me para madrinha. Ele ficou furioso, mas na frente deles, deu os parabéns, disse que sim, que íamos. Na frente do noivo pôs-se a falar da nossa amizade, que éramos amigas de longa data, que as amizades como a nossa eram coisa rara e, com a maior cara de pau, disse que a Carlota era a melhor amiga que alguém podia ter.

No dia do casamento, antes de sairmos de casa fez um escândalo. Implicou com a minha roupa, com os sapatos, com a Carlota… até cabra lhe chamou! Não fosse a Carlota a minha melhor amiga e eu ser a madrinha da noiva, não tinha ido ao casamento!

Ele é louco, completamente louco! Pôs o meu pai contra mim!

Ele manipulou as coisas de tal forma, que a herança do meu pai está a ser administrada por ele! Ele deu a volta à minha mãe, o que também não é difícil. Ele só me deixou sair de casa porque já tem o que quer e sabe que se eu falo ele pode ir para à cadeia!

-Nem nos meus romances!- rematou Rodrigo.

-Sabes que eu e a minha mãe nunca fomos as melhores amigas, mas desde que casei a nossa relação descambou completamente! Já não falo com a minha mãe e com a minha irmã desde que o meu pai morreu! Não fui ao funeral do meu pai. Drogou-me e fechou-me dentro de casa. Depois disse às pessoas que eu não estava bem e que não tinha ido. E fez isso mais vezes! Para dar mostras de que eu estava mal, obrigou-me a ser acompanhada por um psiquiatra amigo dele, que me estava a fazer uma medicação que me deixava completamente desorientada. Eu andava sempre a dormir em pé e nem conseguia pensar!

-E como saíste dessa?

-O marido da Carlota é médico e um dia eles foram lá a casa jantar. Eu estava num estado tal, que quase nem conseguia falar. Ele achou que algo de estranho se passava e comentou com a Carlota. Perguntou-lhe se eu tomava drogas. A Carlota disse que não, mas ficou preocupada.

Claro que ele dizia que eu tinha ficado muito debilitada com a morte do meu pai, que estava à beira de uma depressão, que estava sob o efeito de medicação…

A Carlota como nunca acreditou nele, aproveitou uma das viagens dele e foi lá a casa. Eu estava sozinha com a empregada. Fez algumas perguntas à empregada e às escondidas levou as caixas dos medicamentos para o marido. Resultado, eu estava a ser drogada. O estado em que eu estava era induzido.

-Mas qual era a ideia desse anormal?

-Fácil. Dar-me como não capaz, internar-me numa clínica e ficar com a fortuna do meu pai. O escritório já ele dirige, as partes da minha mãe e da minha irmã, ele também faz delas o que quer… desde que elas tenham dinheiro para gastar, está tudo bem com elas!

-Sim, -continuou Rodrigo, cada vez mais atónito- como saíste dessa, então?

Tocou um telemóvel, era o de Maria. Olhou para o número e, ao ver o número suspirou e disse:

-É a minha mãe! Aposto que é obra do Bernardo…

-Atende.

-Sim, olá Mãe. Onde estou não interessa. Sim, estou bem. Não, não estou em Portugal.

A expressão de Maria ia mudando à medida que ia ouvindo o que a mãe dizia. Rodrigo estava parado em frente a ela a observar as suas expressões. Sempre achara imensa graça às expressões de Maria. Ele costumava dizer que os olhos dela falavam antes de ela abrir a boca…

Maria continuava linda como naquele dia em que se conheceram e ele apaixonado desde o primeiro instante!

O que ele já não tinha sofrido por aquela mulher! E em silêncio.

Maria sempre o viu como um irmão. Como lhe doía quando ela dizia ‘o meu mano’.

Claro que por um lado tinha orgulho em ser o seu melhor amigo, da proximidade que havia entre os dois… mas o amor dele era mais forte que isso.

Quantas vezes não teve vontade de subir ao ponto mais alto de Londres e gritar: Eu amo a Maria. Maria amo-te mais que tudo. Por outro lado tinha um medo terrível de ser descoberto. Que ela se sentisse traída e que o rejeitasse. Aí nem amizade.
Quando Maria conheceu Mike, foram dias dolorosos para ele.

domingo, 10 de maio de 2009

3 - Londres (II)

Depois do encontro da cantina e da agradável conversa que mantiveram durante esse dia, tornaram-se inseparáveis. Eram os dois únicos portugueses do curso de História das Artes e, embora não estivessem no mesmo ano, conseguiam passar muito tempo juntos. Tinham algumas disciplinas em comum devido ao facto de ter havido uma reformulação recente do curso e para além disso, esperavam sempre um pelo outro para almoçarem na cantina.

Aos fins-de-semana Maria ia-lhe mostrando a cidade de Londres. As cidades têm sempre algo de diferente quando se passa a viver nelas. Rodrigo estava em Londres há muito pouco tempo e sentia-se ainda um turista. Nunca tinha estado numa cidade tão grande e com tanta coisa para ver e fazer. Maria já estava em Londres há dois anos e conhecia muito bem a cidade. Desde cedo foi habituada pelo pai a percorrer sozinha as ruas de Lisboa e a utilizar os transportes públicos para ir e vir do colégio e isso tinha sido muito útil nas viagens que já tinha feito sozinha e também aquando da sua mudança para Londres.

Para Rodrigo os passeios de fim-de-semana eram muito especiais. Nascera em Évora e quase não tinha viajado. Tinha agora dezoito anos e estava a viver em Londres, coisa que nunca lhe tinha passado pela cabeça até ao dia em que o pai lhe comunicou que a Tia Rosinda tinha falecido e que lhe tinha deixado todos os seu bens em herança. Rodrigo ficou atónito com a situação. Gostava muito da Tia Rosinda, mas nunca tinha pensado que a sua herança lhe fosse destinada.
Nesse mesmo dia decidiu que usaria parte do dinheiro da herança nos seus estudos. Aos 17 anos, Rodrigo era um rapaz com uma maturidade fora do que era comum nos jovens da sua idade. 'Pai, gostaria de ter a sua permissão para ir estudar para Londres, História da Arte, como era o desejo da Tia Rosinda'. O pai nem queria acreditar que o seu filho ia partir para tão longe. Não tinha, no entanto, forma de o impedir, o rapaz estava decidido e capacidades não lhe faltavam.

E foi assim que Rodrigo logo depois de completar dezoito anos concorreu como aluno estrangeiro à "University of the Arts" e se viu, passados uns meses, a viver na cidade de Londres.
Os primeiros dias não tinham sido nada fáceis. Conseguira um quarto numa das muitas residências de estudantes de Londres, mas teve alguma dificuldade em integrar-se no novo ambiente. Faltavam-lhe os mimos e a comida da mãe e os seus amigos do colégio de Évora.

A nova amiga Maria apareceu mesmo na altura certa. Era portuguesa, bonita, muito simpática e já conhecia muito bem a cidade. Rodrigo sentiu-se um príncipe. Maria parecia ter saído de um conto de fadas.

Seguiram-se meses de muito agradáveis em que os dois partilharam momentos de grande cumplicidade. Maria de uma forma mais natural e desprendida. Rodrigo de forma mais apaixonada. Ansiava pelos momentos em que estava com Maria, fazia tudo para lhe agradar. Inventava passeios em Hide Park e surpreendia-a com um piquenique, comprava bilhetes para a ópera no Covent Garden, para exposições na Tate Gallery e tantas outras actividades.
Maria achava-lhe muita graça. Rodrigo era para ela o melhor amigo que alguma vez tinha tido. Gostava de ser surpreendida pela ingenuidade dele e ria-se com o seu sotaque alentejano.
A diferença de sentimentos entre os dois começou a ser nítida. Para Maria, Rodrigo era o seu melhor amigo e a pessoa em que mais confiava. Para Rodrigo, Maria era muito mais do que isso. Era a sua princesa, a mulher da sua vida. Estava apaixonado por ela.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

3 - Londres (I)

Nem queria acreditar. A mulher da sua vida estava ali, na sua casa, ali perto...
Uma parede os separava. Nunca tão pouco os separou! Os pais, a distância, Bernardo...
Rodrigo e Maria conheceram-se em Londres, onde ambos estudavam História da Arte. Lembra-se do dia em viu Maria pela primeira vez.
Chegou atrasado à aula. Primeiro dia de aulas, primeira cadeira do curso, primeira vez em Londres e primeira vez fora de Portugal... não fossem os dias de férias na praia da Figueira com a tia Rosinda e poderia dizer primeira vez fora do Alentejo!
Quando entrou na sala, poucos eram os lugares vagos. É sempre assim no primeiro dia, todos assistem. Durante o ano a situação inverte-se e no final, o número de lugares ocupados dá a vez ao de vazios do início do ano.
Sentou-se no primeiro lugar que viu, ou talvez não. Talvez tenha sido o destino, aquele em que ninguém quer acreditar, mas que no fim todos dizem, 'foi o destino!'
Sentou-se depois de um 'excuse' e um 'hello'. Ela querendo dar uma imagem de atenta, sem tirar o olhar do fundo do anfiteatro, esboçou um sorriso e disse um 'hello', enquanto se encolhia na cadeira, como que a dar-lhe espaço.
Poucos minutos depois acabou a aula. Rodrigo tinha-se atrasado quase quarenta minutos. Tinha saído duas estações antes no Metro e tivera de fazer o restante percurso a pé! A sorte é que naquela época do ano ainda não fazia muito frio.
Saíram e cada um foi para seu lado. Só dois dias mais tarde se voltariam a encontrar, desta vez na cantina. E lá está a 'obra do destino'. Com a cantina cheia e depois de várias tentativas mal sucedidas para arranjar lugar Rodrigo arranjou finalmente um lugar. Pousou o tabuleiro em cima da mesa, desenrolou o cachecol do pescoço, tirou o casaco e colocou-os nas costas da cadeira. Sentou-se, puxou a cadeira para a frente, começou a desembrulhar os talheres e olhou para a sua frente. Alguém o observava. Um rosto que não lhe era estranho. Era a rapariga ao lado de quem se sentara dois dias antes no anfiteatro!
Sorriram um para o outro e disseram um 'hello' ao mesmo tempo. Rodrigo, mais rápido continuou: 'I'm Rodrigo'. Maria desatou a rir à gargalhada e em português disse:'Não me digas que és português'. Rodrigo riu-se também e perguntou: 'Nota-se muito na pronuncia... ou foi pelo nome?´
'Qual das duas preferes?'.Perguntou Maria. 'Ambas', continuou...